Quem sabe Deus está ouvindo
Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde
botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem
sequer me dar conta do que fazia.
Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da
terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara
para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas
novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:
? Você vai criar um cajueiro aí?
Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.
? Mas é melhor arrancar logo, não é?
Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso ? mas confesso que havia nele um certo remorso. Um
silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse ali mais alguns
centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a
empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão ? disso eu não seria
capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas
que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas
igualmente ignaros: eu, o deus da Vida; ela, o da Morte.
Hoje pela manhã ela começou a me dizer qualquer coisa ? ?seu Rubem, o cajueirinho..." ? mas o telefone tocou, fui
atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e
transplantou para ele a mudinha.
Veio me mostrar:
? Eu comprei um vaso...
? Ahn...
Depois de um silêncio, eu disse:
? Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa...
Ela olhou a plantinha e disse com convicção:
? Esse aqui não vai morrer, não senhor.
Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve
para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse
pela compra do vaso, e ficara aliviada com a minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo,
uma frase profética, dita apenas por dizer:
? Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro.
Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo com certa
gravidade:
? É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...
Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros
assuntos maiores.
(BRAGA, Rubem, 1993-1990. 200 crônicas escolhidas ? 31ª ed. ? Rio de Janeiro: Record, 2010.)
“Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas igualmente ignaros: eu, o deus da Vida,
ela, o da Morte." (6º§) Nessa frase, a palavra “ignaros" significa, EXCETO:
a)
Incultos. |
b)
Ignorantes. |
c)
Insipientes. |
d)
Pretensiosos. |
Quem sabe Deus está ouvindo
Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde
botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem
sequer me dar conta do que fazia.
Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da
terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara
para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas
novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:
? Você vai criar um cajueiro aí?
Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.
? Mas é melhor arrancar logo, não é?
Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso ? mas confesso que havia nele um certo remorso. Um
silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse ali mais alguns
centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a
empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão ? disso eu não seria
capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas
que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas
igualmente ignaros: eu, o deus da Vida; ela, o da Morte.
Hoje pela manhã ela começou a me dizer qualquer coisa ? "seu Rubem, o cajueirinho..." ? mas o telefone tocou, fui
atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e
transplantou para ele a mudinha.
Veio me mostrar:
? Eu comprei um vaso...
? Ahn...
Depois de um silêncio, eu disse:
? Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa...
Ela olhou a plantinha e disse com convicção:
? Esse aqui não vai morrer, não senhor.
Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve
para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse
pela compra do vaso, e ficara aliviada com a minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo,
uma frase profética, dita apenas por dizer:
? Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro.
Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo com certa
gravidade:
? É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...
Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros
assuntos maiores.
(BRAGA, Rubem, 1993-1990. 200 crônicas escolhidas ? 31ª ed. ? Rio de Janeiro: Record, 2010.)
I. “Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer..." (15º§)
II. “É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo..." (18º§)
Os trechos destacados nessas frases, estabelecem, respectivamente, no texto, sentimentos desiguais que podem ser
assim definidos:
a)
Crença / suposição. |
b)
Ceticismo / devoção. |
c)
Indiferença / esperança. |
d)
Desesperança / religiosidade. |
De acordo com o sentido global do texto, o segmento que contém, em destaque, o mote desencadeador para a
escrita dessa crônica é:
a)
“Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando." (2º§) |
b)
“Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores." (19º§) |
c)
“Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso." (6º§) |
d)
“Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia." (1º§) |
“Outro dia..." / “Na semana seguinte..." / “Dois ou três dias depois..." As expressões anteriores constituem, dentro da
narrativa em questão, marcas de
a)
tempo psicológico. |
b)
tempo cronológico. |
c)
fluxo de consciência. |
d)
discurso indireto livre. |
“–Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa..." (12º§) Assinale a alternativa em que o acento da crase foi utilizado
pela mesma razão da frase anterior.
a)
Ela foi à feira comprar um vaso. |
b)
Ele estava se referindo à mudinha de caju. |
c)
Às vezes nos surpreendemos com a natureza. |
d)
Entregue a castanha àquela pessoa que fez o pedido. |
Em “... mas o telefone tocou, fui atender, e a frase não se completou." (7º§) A partícula “e", sublinhada nessa
estrutura, estabelece entre as orações uma ideia de
a)
oposição. |
b)
conclusão. |
c)
acréscimo. |
d)
proporção. |
Assinale a alternativa em que o termo destacado NÃO pertence à mesma classe gramatical dos demais.
a)
gesto leviano. |
b)
pequeno vaso. |
c)
falsa modéstia. |
d)
silêncio criminoso. |
“... eu, o deus da Vida; ela, o da Morte." (6º§) O excerto, anteriormente sublinhado, contém um exemplo de figura de
linguagem denominada
a)
zeugma. |
b)
perífrase. |
c)
hipérbole. |
d)
polissíndeto. |
O uso do pronome demonstrativo “isso" na frase “... mas isso a empregada não sabe;..." (6º§) se justifica por
a)
mencionar tempo futuro. |
b)
comprovar noção de espaço. |
c)
referir-se a algo já citado no texto. |
d)
indicar algo a ser exemplificado a seguir. |
Considere as seguintes frases:
I.“– Mas é melhor arrancar logo, não é?" (5º§)
II.“Ela espera, talvez, que eu o leve para o quintal..." (15º§)
É correto afirmar que as palavras sublinhadas nas frases anteriores, expressam, respectivamente, ideias de
a)
modo – dúvida. |
b)
tempo – dúvida. |
c)
intensidade – rapidez. |
d)
conclusão – incerteza. |
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