Um antigo provérbio latino adverte: “Cuidado com o homem de um só livro”. Hollywood, no entanto, conhece apenas um tema quando realiza filmes de monstros, desde o arquetípico Frankenstein, de 1931, ao recente mega-sucesso Parque dos dinossauros. A tecnologia humana não deve ir além de uma ordem decretada deliberadamente por Deus ou estabelecida pelas leis da natureza. Não importa quão benignos sejam os propósitos do transgressor, tamanha arrogância cósmica não pode senão levar a tomates assassinos, enormes coelhos com dentes afiados, formigas gigantes nos esgotos de Los Angeles ou mesmo fenomenais bolhas assassinas que vão engolindo cidades inteiras ao crescerem. Esses filmes, no entanto, originaram-se de livros muito mais sutis e, nessa transmutação, distorceram suas fontes de modo a impedir até o mais vago reconhecimento temático.
A tendência começou em 1931, com Frankenstein, o primeiro grande filme “falado” de monstro a sair de Hollywood, que determinou a sua temática através da estratégia mais “despojada” que se poderia conceber. O filme começa com um prólogo (antes mesmo da apresentação dos títulos), durante o qual um homem bem vestido, em pé sobre o palco e com uma cortina atrás de si, adverte os espectadores dos sustos que talvez levem. Em seguida, anuncia a temática mais profunda do filme: a história de “um homem de ciência que buscou criar um homem à sua própria semelhança, sem considerar os desígnios de Deus”.
O Frankenstein original de Shelley é um livro rico, com inúmeros temas, mas encontro nele pouco que confirme a leitura hollywoodiana. O texto não é nem uma diatribe acerca dos perigos da tecnologia, nem uma advertência sobre uma ambição desmesurada contra a ordem natural. Não encontramos nenhuma passagem que trate da desobediência a Deus - um assunto inverossímil para Mary Shelley e seus amigos livres-pensadores. Victor Frankenstein é culpado de uma grande deficiência moral, mas o seu crime não consiste em transgredir uma ordem natural ou divina por meio da tecnologia. O seu monstro era um bom homem, num corpo assustadoramente medonho. Victor fracassou porque cedeu a uma predisposição da natureza humana - o asco visceral pela aparência do monstro - e não cumpriu o dever de qualquer criador ou pai ou mãe: instruir a sua progênie e educar os outros para aceitá-la.
(Adaptado de Stephen Jay Gould. Dinossauro no palheiro. S. Paulo, Cia. das Letras, 1997, p.79-89)
No confronto entre a obra original de Shelley e sua versão cinematográfica hollywoodiana, de 1931, o autor ressalta
a)
o elogio da tecnologia no livro e sua demonização no filme, que chega a tratá-la como o maior de todos os males. |
b)
a diversidade temática do livro e o tema monocórdio do filme, que inclusive não aparece no enredo original. |
c)
o rigor científico presente no livro e a vulgarização dos métodos mais caros à ciência no filme. |
d)
o respeito aos limites da natureza no livro e a transgressão da ordem natural das coisas no filme. |
e)
o ateísmo defendido no livro e a visão de mundo cristã que o filme veicula, muito combatida no enredo original. |
A tecnologia humana não deve ir além de uma ordem decretada deliberadamente por Deus ou estabelecida pelas leis da natureza. (1.º parágrafo)
A afirmação acima é expressão
a)
do parecer dos autores de livros que trataram do tema com grande sutileza. |
b)
da crença de Shelley, anunciada antes mesmo de se fazer menção a seu livro. |
c)
de um pensamento tão caro aos latinos quanto o provérbio com que se abre o ensaio. |
d)
da convicção do autor, que é corroborada pelos roteiristas de Hollywood. |
e)
do sentido que o autor depreende dos filmes de monstros de Hollywood. |
O segmento cujo sentido está adequadamente expresso em outras palavras é:
a)
asco visceral pela aparência = profunda aversão pelo aspecto |
b)
desde o arquetípico [...] ao recente mega-sucesso = do antiquado [...] à estrondosa inovação desmedida |
c)
nem uma diatribe acerca dos perigos = sequer um colóquio em torno das obliterações |
d)
um assunto inverossímil = uma pauta imperfectível |
e)
seus amigos livres-pensadores = seus companheiros de pensamento volúvel |
... mas encontro nele pouco que confirme a leitura hollywoodiana.
O verbo empregado nos mesmos tempo e modo que o grifado acima está em:
a)
A tecnologia humana não deve ir além de uma ordem... |
b)
Um antigo provérbio latino adverte... |
c)
... homem de ciência que buscou criar um homem à sua própria semelhança... |
d)
... quão benignos sejam os propósitos do transgressor... |
e)
... estratégia mais "despojada" que se poderia conceber. |
A substituição do elemento grifado pelo pronome correspondente, com os necessários ajustes no segmento, foi realizada corretamente em:
a)
adverte os espectadores dos sustos = lhes adverte dos sustos |
b)
vão engolindo cidades inteiras ao crescerem = vão engolindo-nas ao crescerem |
c)
distorceram suas fontes de modo a impedir = distorceram-nas de modo a impedir |
d)
determinou a sua temática através da estratégia = determinou-lhe através da estratégia |
e)
que buscou criar um homem à sua própria semelhança = que buscou-o criar à sua própria semelhança |
Atente para as seguintes afirmações sobre a pontuação empregada em segmentos do texto.
I. ... o primeiro grande filme "falado" de monstro a sair de Hollywood, que determinou a sua temática através da estratégia mais "despojada" que se poderia conceber.
A retirada da vírgula colocada imediatamente depois de Hollywood redundaria em prejuízo para a correção e o sentido original.
II. O filme começa com um prólogo (antes mesmo da apresentação dos títulos), durante o qual...
Os parênteses poderiam ser substituídos por travessões, sem prejuízo para a correção e a lógica.
III. Não encontramos nenhuma passagem que trate da desobediência a Deus - um assunto inverossímil para Mary Shelley e seus amigos livres-pensadores.
A substituição do travessão por uma vírgula resultaria em prejuízo para a correção e a lógica.
Está correto o que se afirma em
a)
I, apenas. |
b)
I e II, apenas. |
c)
II e III, apenas. |
d)
III, apenas. |
e)
I, II e III. |
A frase cujo verbo permite transposição para a voz passiva é:
a)
... nenhuma passagem que trate da desobediência a Deus... |
b)
O filme começa com um prólogo... |
c)
... porque cedeu a uma predisposição da natureza humana... |
d)
O Frankenstein original de Shelley é um livro rico... |
e)
... e não cumpriu o dever de qualquer criador... |
... tamanha arrogância cósmica não pode senão levar a tomates assassinos, enormes coelhos com dentes afiados ...
A frase acima pode ser reescrita, mantendo-se a correção e a lógica, com a substituição do segmento grifado por:
a)
pode levar tão somente a. |
b)
não pode levar a nada se não a. |
c)
não pode levar à exceção de. |
d)
pode levar a tudo menos a. |
e)
pode não levar apenas a salvo de. |
As normas de concordância estão inteiramente respeitadas neste livre comentário sobre o texto:
a)
De bons livros dificilmente se faz bons filmes, costuma declarar, com a ênfase das formulações paradoxais, importantes críticos de cinema. |
b)
É bastante incomum que se enalteça as adaptações cinematográficas de modo tão enfático como se faz com os livros que lhes deu origem. |
c)
Hão de realizar grandes adaptações os diretores que somarem à cultura literária um profundo conhecimento da arte cinematográfica e das diferenças que as separam. |
d)
A manutenção da figura do narrador que há nos livros, com raríssimas exceções, dificilmente se justificam na adaptação que dele se faz para as telas do cinema. |
e)
Mais de uma vez já foi dito que a obsessão pela fidelidade aos livros a ser adaptados são o primeiro passo para o fracasso de um filme. |
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