Freud costumava dizer que os escritores precederam os psicanalistas na descoberta do inconsciente. Tudo porque literatura e psicanálise têm um profundo elo em comum: a palavra. 5 Já me perguntei algumas vezes como é que uma pessoa que tem dificuldade com a palavra consegue externar suas fantasias e carências durante uma te- rapia. Consultas são um refinado exercício de comu- nicação. Se relacionamentos amorosos fracassam 10 por falhas na comunicação, creio que a relação tera- pêutica também poderá naufragar diante da impossi- bilidade de o paciente se fazer entender. Estou lendo um belo livro de uma autora que, além de poeta, é psicanalista, Sandra Niskier Flanzer. 15 E o livro se chama justamente “a pa-lavra”, assim, em minúsculas e salientando o verbo contido no substanti- vo. Lavrar: revolver e sulcar a terra, prepará-la para o cultivo. Se eu tenho um Deus, e tenho alguns, a palavra 20 é certamente um deles. Um Deus feminino, porém não menos dominador. Ela, a palavra, foi determinan- te na minha trajetória não só profissional, mas exis- tencial. Só cheguei a algum lugar nessa vida por me expressar com clareza, algo que muitos consideram 25 fácil, mas fácil é escrever com afetação. A clareza exige simplicidade, foco, precisão e generosidade. A pessoa que nos ouve e que nos lê não é obrigada a ter uma bola de cristal para descobrir o que queremos dizer. Falar e escrever sem necessidade de tradução 30 ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver todos os dias por aqueles que apreciam viver num mundo com menos obstáculo. A palavra, que ferramenta. É uma pena que haja tamanha displicência em 35 relação ao seu uso. Poucos se dão conta de que ela é a chave que abre as portas mais emperradas, que ela facilita negociações, encurta caminhos, cria laços, aproxima as pessoas. Tanta gente nasce e morre sem dialogar com a vida. Contam coisas, falam por 40 falar, mas não conversam, não usam a palavra como elemento de troca. Encantam-se pelo som da própria voz e, nessa onda narcísica, qualquer palavra lhes serve. Mas não. Não serve qualquer uma. 45 A palavra exata é um pequeno diamante. Embeleza tudo: o convívio, o poema, o amor. Quando a palavra não tem serventia alguma, o silêncio man- tém-se no posto daquele que melhor fala por nós. Em terapia – voltemos ao assunto inicial – temos 50 que nos apresentar sem defesas, relatar impressões do passado, tornar públicas nossas aflições mais se- cretas, perder o pudor diante das nossas fraquezas, ser honestos de uma forma quase violenta, tudo em busca de uma “absolvição” que nos permita viver sem 55 arrastar tantas correntes. Como atingir o ponto nevrálgico das nossas dores sem o bisturi certeiro da palavra? É através dela que a gente se cura.
MEDEIROS, Martha. A palavra. Revista O Globo. 18 set. 2011.
O trecho "Mas não. Não serve qualquer uma". (l . 44) pode ter sua pontuação alterada, sem modificar-lhe o sentido original, em:
a)
Mas não: não serve qualquer uma. |
b)
Mas, não; não, serve qualquer uma. |
c)
Mas não; não serve, qualquer uma. |
d)
Mas: não, não. Serve qualquer uma. |
e)
Mas não – não; serve qualquer uma. |
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