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Comentários / Tribunal de Justiça - Mato Grosso do Sul - Juiz de Direito Substituto - PUC - PR - 2012 - Prova Objetiva


Justiça social e justiça histórica

Leia o seguinte artigo, do sociólogo e jurista português Boaventura de Sousa Santos:

Boaventura de Sousa Santos

Ao regressar de férias, o STF enfrenta uma questão crucial para a construção da identidade do Brasil pós-constituinte: é possível adotar um sistema de ações afirmativas para ingresso nas universidades públicas que destine parte das vagas a negros e indígenas? Ao rejeitar o pedido de liminar em ação movida pelo DEM visando suspender a matrícula dos alunos, o ministro Gilmar Mendes sugeriu que a resposta fosse dada em razão do impacto das ações afirmativas sobre um dos elementos centrais do constitucionalismo moderno: a fraternidade.

Perguntou-se se estaria abrindo mão da ideia de um país miscigenado e adotando o conceito de nação bicolor, que opõe "negros" a "não negros", e se não haveria forma mais adequada de realizar "justiça social" - por exemplo, cotas pelo critério da renda. Situar o juízo de constitucionalidade no horizonte da fraternidade é uma importante inovação no discurso do Supremo. Mas, assim como o debate sobre a adoção de ações afirmativas baseadas na cor da pele não pode ser dissociado do modo como a sociedade brasileira se organizou racialmente, o debate sobre a concretização da Constituição não pode desprezar as circunstâncias históricas nas quais ela se insere.

Como já escrevi nesta seção, o ideário da fraternidade nas revoluções europeias caminhou de par com a negação da fraternidade fora da Europa ("As dores do pós-colonialismo", 21/8/06). No "novo mundo", a prosperidade foi construída à base da usurpação violenta de territórios originários dos povos indígenas e da sobreexploração dos escravos para aqui trazidos. Por essa razão, no Brasil, a injustiça social tem forte componente de injustiça histórica e, em última instância, de racismo anti-índio e antinegro ("Bifurcação na Justiça", 10/6/08).

Em contraste com outros países (EUA), o Brasil apresenta um grau bem maior de miscigenação. A questão é saber se esse maior grau de miscigenação foi suficiente para evitar a persistência de desigualdades estruturais associadas à cor da pele e à identidade étnica, ou seja, se o fim do colonialismo político acarretou o fim do colonialismo social.

Os indicadores sociais dizem que essas desigualdades persistem. Por exemplo, um estudo recente divulgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República mostra que o risco de ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior entre adolescentes negros do que entre brancos. Falar em fraternidade no Brasil significa enfrentar o peso desse legado, grande desafio para um país em que muitos, levianamente, tomam a ideia de democracia racial como dado, não como projeto.

Mas, se o desafio for enfrentado pelas instituições sem que se busque diluir o problema em categorias fluidas como a de "pobres", o país caminhará não só para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de uma ordem verdadeiramente pós-colonial, no plano sociopolítico.

Ao estabelecer um sistema de ações afirmativas para negros e indígenas, a UnB oferece três grandes contributos para essa transição. Em primeiro lugar, o sistema de educação superior recusa-se a reproduzir as desigualdades que lhe são externas e mobiliza-se para construir alternativas de inclusão de segmentos historicamente alijados das universidades em razão da cor da pele ou identidade étnica. Segundo, a adoção dessas alternativas não acarreta prejuízo para a qualidade acadêmica. Ao contrário, traz mais diversidade, criatividade e dinamismo ao campus ao incluir novos produtores e modos de conhecer. Terceiro, apesar de levantarem reações pontuais, como a do DEM, ações afirmativas baseadas na cor da pele ou identidade étnica obtêm um elevado grau de legitimidade na comunidade acadêmica. Basta ver como diversos grupos de pesquisa e do movimento estudantil se articularam em defesa do sistema da UnB quando ele foi posto em causa. Para o estudo das reformas universitárias, é fundamental que o programa da UnB possa completar o ciclo de dez anos previsto no plano de metas da instituição.

A resposta a ser adotada pelo STF é incerta. O tribunal poderá desprezar a experiência da UnB sob o receio de que ela dissolva o mito de um país fraterno, porque mais miscigenado do que outros. Mas o tribunal também poderá entender que o programa da UnB, ao reconhecer a existência de grupos historicamente desfavorecidos, é, ao contrário, uma tentativa válida de institucionalizar uma fraternidade efetiva. Somente a segunda resposta permite combinar justiça social com justiça histórica.

Fonte: Folha de S. Paulo, 26/08/2009.

Questão:

Sobre as ideias defendidas por Boaventura de Sousa Santos, assinale a única assertiva CORRETA:

Resposta errada
a)

Uma das três grandes contribuições da implantação de um sistema de ações afirmativas para negros e indígenas, no meio universitário brasileiro (exemplificado pela UnB) é a manutenção de um conceito basilar da moderna democracia brasileira, qual seja, a ideia inconteste de democracia racial.

Resposta errada
b)

Uma das três grandes contribuições da implantação de um sistema de ações afirmativas para negros e indígenas, no meio universitário brasileiro (exemplificado pela UnB) é o fechamento de um ciclo de discussões acerca da falência do mito da igualdade racial; a política de ações afirmativas, assim, comprova que a miscigenação não ocorreu em nosso país.

Resposta errada
c)

Um dos dois pontos mais debatidos acerca da política de cotas raciais (para negros e índios) no meio universitário brasileiro é o decrescimento da qualidade do binômio ensino/aprendizagem no ambiente acadêmico, fato comprovado a partir do estudo de caso da UnB.

Resposta errada
d)

Um dos dois pontos mais debatidos acerca da política de cotas raciais (para negros e índios) no meio universitário brasileiro é o fato de que a adoção das chamadas ações afirmativas por meios institucionais, como a UnB, pode prejudicar as reformas universitárias almejadas pelo corpo docente.

Resposta correta
e)

Uma das três grandes contribuições da implantação de um sistema de ações afirmativas para negros e indígenas, no meio universitário brasileiro (exemplificado pela UnB) é a recusa, por parte do ensino superior, da reprodução de certas desigualdades externas, historicamente construídas.

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