1 A pluralidade étnica dos brasileiros impressionava
vivamente os estrangeiros que, desde 1808, se avolumavam
como viajantes, naturalistas ou comerciantes no país. Apesar
4 disso, para além do espanto dos viajantes, são raros os registros
dessa convivência interétnica do século passado fora da
clássica relação senhor-escravo.
7 Em um processo-crime de 1850, ocorrido no
município fluminense de Rio Claro, encontramos um raro
flagrante de tal convivência e das tensões do dia a dia dos
10 brasileiros oitocentistas.
Antônio Ramos foi processado pelo assassinato do
negociante Feliciano Lisboa e de sua “caseira” (amásia), Isabel
13 Leme. Todas as testemunhas que depuseram contra ele no
processo acreditavam que o motivo do crime fora uma
vingança pelo fato de Isabel tê-lo chamado de negro após um
16 jantar na casa das vítimas.
O que verdadeiramente interessa no caso é que, no
processo, a indignação de Ramos, apesar de ele ter sido
19 considerado um homem violento, pareceu compreensível aos
depoentes. Ainda que ele não tivesse justificado seu ato
extremo, nenhuma das testemunhas negou-lhe razão por ter
22 raiva de Isabel, que, afinal, o recebera em casa. É rara, na
documentação, referência tão explícita à convivência
interétnica no nível privado bem como às normas de
25 comportamento e tensões que implicava, consubstanciadas no
sentido pejorativo que a qualificação negro, dada por Isabel ao
seu convidado, tinha para os que conviviam com eles, ou seja,
28 não foi o convite de Lisboa e Isabel para que Ramos jantasse
em sua casa — um homem livre, ao que tudo indica,
descendente de africanos — que causou estranheza às
31 testemunhas, mas o fato de que, nessa situação, a anfitriã o
tivesse chamado de negro, desqualificando-o, desse modo,
como hóspede à mesa do casal.
34 Como regra geral, o que se depreende da leitura desse
processo bem como da de outros documentos similares é que
a palavra negro foi utilizada na linguagem coloquial, por quase
37 todo o século XIX, como uma espécie de sinônimo de escravo
ou ex-escravo, com variantes que definiam os diversos tipos de
cativos, como o africano — comumente chamado de preto até
40 meados do século — ou o cativo nascido no Brasil —
conhecido como crioulo —, entre outras variações locais ou
regionais. Apesar disso, 41% da população livre do Império,
43 recenseada em 1872, era formada por descendentes de
africanos.
Hebe M. Mattos de Castro. Laços de família e direitos no final da escravidão.
In: História da vida privada no Brasil: Império. Coordenador-geral
Fernando A. Novais; organizador do volume Luiz Felipe de Alencastro. vol. 2.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 341-3 (com adaptações).
Com referência às ideias do texto, julgue o(s) item(ns):
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