Após pouco mais de seis décadas de existência, a televisão brasileira ostenta condições peculiares: sofisticação técnica, forte presença na cultura, agência de porte na vida econômica e política e - aqui começa o problema - elevada capacidade de manutenção, quando não de consolidação, de um padrão organizacional e de 5 funcionamento construído em grande medida num período marcado pela concentração do poder político e econômico. A situação tem algo de paradoxal. Um quarto de século após a Constituição que marcou a nova etapa democrática da vida nacional, a organização do sistema de veículos de comunicação brasileiro é mais marcada pelo gigantismo e pela 10 concentração empresarial do que no início da nova etapa. Não há como fugir à evidência de que esse é o grande problema que as políticas da comunicação e da cultura terão de enfrentar com mais força daqui pra frente. Esse é o pano de fundo que dá sentido a todo esforço que fizermos para caracterizar a natureza desse “meio” de comunicação, que há muito deixou de ser meio no sentido de veículo de 15 mensagens para converter-se em meio no sentido de ambiente que fornece enquadramento para a vida das pessoas. Talvez um bom ponto de partida consista em examinar melhor a capacidade que acabei de atribuir à televisão, a de funcionar como um “ambiente” de vida. Seu nome altissonante esconde a fragilidade de um meio dependente de um sentido 20 direcional como a visão. Por maiores que sejam seus avanços técnicos, a TV não tem como dispensar a técnica do rádio e joga boa parte do seu esforço no áudio. A questão é: feitas as pazes com o rádio e o cinema, que já se apresentavam prontos e com perfil bem definido quando a TV nasceu, como ficam as tecnologias mais recentes, às quais ela agora tem de se adaptar, em especial se considerarmos que 25 essas tecnologias de última geração condensam em si todas as características das anteriores? De certo modo a resposta já foi antecipada: trata-se de uma questão de adaptação mais do que de incorporação ou apropriação, como já ocorreu com o cinema e o rádio. E nisso a televisão tem se revelado um meio técnico altamente eficiente no uso, como recurso na produção e como plataforma na distribuição, das 30 novas conquistas informáticas. No entanto, ela não se transforma por dentro, no modo como organiza as mensagens que transmite, nem dá sinais de que vá ser incorporada por tecnologias mais recentes. Em suma, a televisão será capaz de manter a iniciativa na formatação do espaço simbólico no qual se movem as pessoas - leia-se, seus consumidores? Continuará a atrair e manter consumidores da sua programação, ou 35 seja, continuará a programar amplos segmentos da vida de grandes setores da sociedade? Tudo indica que ela tem poder e flexibilidade para permanecer um bom tempo entre nós, fazendo aquilo que sempre soube fazer, que é captar energias no entorno para desenvolvê-las organizadas em programas. O que afinal sustenta a televisão em posição tão firme no complexo de meios 40 de comunicação? A resposta é de ordem organizacional: trata-se do caráter compactamente controlado que ela assumiu no confronto com os outros meios no complexo da indústria cultural ao longo do século XX, com desdobramentos atuais. A boa e velha indústria cultural tem na televisão seu último bastião. Avanços na tecnologia da comunicação não envolvem a substituição dos meios 45 mais antigos pelos mais novos. Estes simplesmente incorporam ao seu padrão próprio os recursos fornecidos pelos anteriores. Imprensa, rádio, cinema, televisão e redes digitais seguem essa linha. Mas a entrada no complexo das comunicações de novos ramos exige uma reconfiguração que necessariamente afeta aquele cuja posição era solidamente central. 50 Por mais que se revele capaz de incorporar traços básicos do universo on-line, a televisão fica exposta ao novo padrão de “divisão do trabalho” que se cria com a expansão do sistema, formado por uma imprensa ultra concentrada e apta a não só selecionar como a carimbar os eventos ditos importantes, atribuindo-lhes marcas de fácil identificação. 55 A televisão vem se revelando capaz de manter seus traços básicos, pois combina uma radiofonia dispersa, mas muito presente e com alto grau de disseminação e inculcação de temas e conteúdos, e uma ampla e multifacetada rede digital com sinais de crescente concentração e controle; e busca reorientar seu espaço nisso. 60 Longe de estar desatenta aos grandes movimentos da sociedade e de desviar a atenção deles, a televisão, mais do que qualquer outro meio, empenha-se em detectar as tendências emergentes e em capturá-las ao seu modo na programação. Neste sentido, nada tem de marcadamente “conservadora”. Está sempre um passo, mas nunca mais do que um passo, à frente das massas. Nisso, ela tem foco 65 específico: capta os sinais da emergência de novos grupos no mercado e imediatamente os projeta na programação, ganhando com isso a iniciativa na definição social das suas novas identidades, desde logo como consumidores “de tudo, incluindo programação de TV”. Mulheres, idosos “para não falar das indefectíveis crianças” e grupos étnicos de todo tipo são capturados nesse processo que não é de 70 ajuste puro e simples ao mundo que já está dado, mas de preparação “seletiva” àquilo que se anuncia para vir. É prospectiva e atuante com relação às tendências que reforçarão o cenário no qual ela prospera, e nisso reside o principal segredo da sua vitalidade e longevidade. Entretanto, o traço característico mais importante na televisão revela-se na 75 decisiva conversão, que se deu ao longo da sua história, de meio no sentido de veículo de mensagens e programas para meio no sentido de ambiente de vida, de atmosfera em cujo interior se movem os homens. A imprensa nunca fez isso, nem se propôs a tanto. A televisão é envolvente, mas de modo incompleto, insaturado. A questão é 80 sua organização como centro de poder econômico e político, mais do que cultural. E aqui entramos no jogo aberto dos interesses, das reivindicações e da capacidade de organização – um jogo que mal começou a ser jogado entre nós.
COHN, Gabriel. Le Monde Diplomatique Brasil. Mar. 2003, p. 7-8 (Adaptado).
No terceiro parágrafo do texto, o autor apresenta uma série de questionamentos como, por exemplo, “Em suma, a televisão será capaz de manter a iniciativa na formatação do espaço simbólico no qual se movem as pessoas - leia-se, seus consumidores?”.
Assinale a alternativa que apresenta o objetivo do autor ao lançar mão desses questionamentos.
a)
introduzir sua opinião sobre o assunto em desenvolvimento. |
b)
apresentar um argumento incontestável. |
c)
interagir com o interlocutor. |
d)
servir como sinalizador de leitura. |
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