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Comentários / UFT - Universidade Federal do Tocantins - Vestibular - COPESE - 2013 - Prova Manhã - 2013.1 - Inglês


Ninguém mora onde não mora ninguém

1        Nas grandes cidades, pessoas que não têm onde
     morar são contraditoriamente chamadas de “moradores” de rua.
     É um eufemismo que acoberta o quadro da injustiça social típica
     das sociedades em fase de capitalismo selvagem, aquele no qual
5    a eliminação do outro é a regra. Que tantos e cada vez mais
     vivam nas ruas é uma prova de que o famoso instinto gregário do
     ser humano se esfacela, ou assume formas cada vez mais
     enganadoras, porquanto mais voláteis em uma sociedade que é,
     ao mesmo tempo, de massas e de indivíduos que não têm a
10   menor noção do que significa o outro.
         O aumento das relações virtuais em detrimento das
     relações “atuais” é a própria perversão das massas marcadas
     pela anulação física individual em nome de um eu abstrato,
     sustentado apenas como imagem, como avatar, e que tem como
15   correspondente um outro reduzido à sua mera abstração. Há,
     certamente, exceções para a regra da distância com que o eu
     mede o outro.
         Dizem as pesquisas que o número de pessoas vivendo
     sem teto cresceu nos últimos anos por causa do desemprego. E
20   são milhares. Motivos além do desemprego podem confundir
     quanto ao sentido (e o sem sentido) da complexa experiência
     vivida por essas pessoas. Afinal, pode-se encontrar entre os que
     vivem nas ruas até mesmo quem não se sente em situação de
     injustiça social.
25       A população das ruas das grandes cidades é composta
     de habitantes (ou desabitantes) provisórios ou não, que estão ali
     por motivos diversos. Muitas vezes são afetivos. Não é raro
     encontrar ricas histórias de vida entre as pessoas sem morada,
     desde aquele que renunciou à vida burguesa por considerá-la
30   insuportável, até quem, por meio de inesperadas leituras
     filosóficas, criou um significado para o ato de “habitar” a
     transitoriedade, ou seja, “desabitar” instransitivamente e estar
     assim, na mera existência.
         Que não habitar uma casa possa significar uma
35   experiência existencial é, no entanto, apenas a exceção que
     confirma a regra da contemporânea injustiça social a cuja base
     racional e afetiva tantos entregam as forças. Renunciar, desistir,
     jogar a toalha, permitir-se a impotência como o Bartleby, de
     Melville, ou o fracasso, como um dia afirmou J. L. Borges, pode
40   ser o único modo de viver em um mundo marcado pela
     melancolia e pelo sem sentido em termos políticos, estéticos e
     metafísicos.
         O cenário social contemporâneo é o espaço e o tempo
     dessa possibilidade de fracasso que diz respeito à potencialidade
45   mais profunda de nossos tempos. É a forma mais terrível do mal,
     a da banalização que se estabelece na vida humana como força
     lógica. Como um “deixar acontecer”, ao qual damos o nome de
     “abandono”, esse ato de exílio, de ostracismo, de curiosa rejeição
     sem ação. A mendicância das pessoas é apenas a verdade
50   íntima do capitalismo como mendicância da própria política
     deixada a esmo em nome de antipolíticos interesses pessoais. A
     mendicância é a imagem social das escolas, dos hospitais
     públicos, do salário mínimo.
          “Moradores de rua” são a figura mais perfeita do
55   abandono que está no imo da devoração capitalista. Convive-se
     com eles nos bairros elegantes das cidades grandes como se
     fossem um estorvo ou, para quem pensa de um modo mais
     humanitário, como um problema social a ser resolvido
     filantropicamente. Alguns moram em lugares específicos, têm sua
60   “própria” esquina, carregam objetos de uso aonde quer que vão;
     outros perambulam a esmo, desaparecendo da vista de quem
     tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem
     não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela
     contradição de morar onde não mora ninguém, não têm o direito
65   de ser alguém. Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o
     mesmo que os outros dentro de suas casas: dormem, comem,
     fazem sexo. A condição humana é o que se divide por paredes
     ou na ausência delas. A democracia torna-se uma questão de
     nudez e exposição da vida íntima.
70       Ninguém “mora na rua”; antes, quem está na rua não
     mora. Quem está fora dos básicos direitos constitucionais está
     excluído da sociedade. E, muito mais além da Constituição, está
     excluído pelo próprio status com que é medido. O status de
     “morador de rua” é apenas um modo de incluir os excluídos na
75   ordem do discurso acobertadora do fascismo prático de cada dia,
     oculto sob o véu da autista sensibilidade burguesa. Se o princípio
     de autoconservação a qualquer custo é a base da ação de
     indivíduos unidos na massa, está imediatamente perdida a
     dimensão do outro sem a qual não podemos dizer que haja ética
80   ou política. Mesmo sob o status de morador de rua, o mendigo da
     nossa esquina é a prova do fracasso de todos os sistemas. Se as
     estatísticas não mudarem comprovando que a tendência da
     exceção pode ser a regra, talvez a democracia de teto e paredes
     não sirva mais a ninguém em breve. Só que às avessas.


TIBURI, Márcia. Ninguém mora onde não mora ninguém. Cult, São Paulo, n. 155, mar. 2011.

Disponível em: . Acesso em: 06 fev. 2012. (Adaptado)

Questão:

Quanto às normas gramaticais relacionadas ao uso dos sinais de pontuação, assinale a alternativa INCORRETA:

Resposta errada
a)

Na linha 16, “certamente” foi separado por vírgulas, não porque esse uso seria obrigatório, mas para realçar o advérbio.

Resposta errada
b)

Na linha 66, foram empregados dois pontos para marcar uma suspensão do discurso a que segue uma enumeração explicativa.

Resposta errada
c)

Em “Ninguém ‘mora na rua’; antes, quem está na rua não mora.” (l. 70 e 71), o ponto e vírgula alonga a pausa, acentuando o sentido adversativo das orações.

Resposta correta
d)

É facultativo o emprego da vírgula após o adjunto adverbial em “Nas grandes cidades, pessoas que não têm onde morar são contraditoriamente chamadas de ‘moradores’ de rua.” (l. 1 e 2).

Resposta errada
e)

Em “Renunciar, desistir, jogar a toalha, permitir-se a impotência [...] ou o fracasso” (l. 37 a 39), as vírgulas foram empregadas para separar elementos que exercem a mesma função sintática e com valor sinonímico.

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