Texto para o(s) item(ns) a seguir.
1 Eu não sou capaz de me lembrar do cheiro que meu pai tinha quando eu era criança. As pessoas mudam de cheiro com a idade, assim como mudam de pele e de voz, e quando 4 você fala da infância, é possível que associe a figura do seu pai com a figura do seu pai como é hoje. Então, quando me lembro dele me trazendo um triciclo de presente, ou mostrando como 7 funcionava uma máquina de costura, ou pedindo que eu lesse algumas palavras escritas no jornal, ou conversando comigo sobre as coisas que se conversam com uma criança de três 10 anos, sete anos, treze anos, quando me lembro de tudo isso, a imagem dele é a que tenho hoje, os cabelos, o rosto, meu pai bem mais magro e curvado e cansado do que em fotografias 13 antigas que não vi mais que cinco vezes na vida. Quando me lembro do meu pai me proibindo de mudar de escola, a voz que ouço dele é a de hoje, e me 16 pergunto se algo parecido acontece com ele: se a lembrança que ele tem de mim aos treze anos se confunde com a visão que ele tem de mim agora, depois de tudo o que ficou sabendo a 19 meu respeito nessas quase três décadas, um acúmulo de fatos que apagam os tropeços do caminho para chegar até aqui, e o que para mim foi um capítulo decisivo da vida, a briga que 22 tivemos por causa da mudança de escola, para ele pode não ter sido mais que um fato banal, uma entre tantas coisas que aconteciam em casa e no trabalho e na vida dele com a minha 25 mãe e as outras pessoas ao redor durante a adolescência do filho.
Michel Laub. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 48-9 (com adaptações).
Copyright © Tecnolegis - 2010 - 2024 - Todos os direitos reservados.