Estava falando ao telefone com um velho
amigo, que mora há anos fora e com quem não tinha
contato há muito tempo. Como tenho o costume de
andar de um lado para outro quando estou ao telefone
5 (sem fio, claro), caminhei até a janela e, meio distraída,
me peguei olhando para o terraço diante de mim,
um estacionamento que vive repleto de carros. É uma
visão que me desgosta, pois, no passado, quando o
shopping vizinho ainda não tinha sido construído, toda
10 a beleza da Lagoa Rodrigo de Freitas se descortinava
à minha frente.
– Sabe de uma coisa que nunca lhe contei? –
disse a meu amigo. – Eu perdi a vista.
Houve alguns segundos de silêncio do outro
15 lado do fio. Imaginei o que ele estava sentindo. Como
me conhece desde adolescente, muitas vezes se debruçou
na janela da minha sala para apreciar, de dia
ou de noite, aquela beleza toda: de dia, o espelho
d’água com seus diferentes matizes, variando segundo
20 a hora e a estação do ano, e por trás a sinuosidade
das montanhas, do Sumaré ao Cantagalo, passando
pelo paredão do Corcovado; à noite, o mesmo espelho,
só que transformado numa miríade de luzes, os
prédios acesos duplicados nas águas, tendo ao fundo
25 o paredão escuro – então quase invisível – das montanhas
silenciosas. E mais as festas, os fogos, as noites
de lua. E mais os domingos de regata, a água da
Lagoa pontilhada de velas brancas ou riscada pelos
barcos a remo. E ainda, mais recentemente, nos Natais,
30 a árvore e seus brilhos, suas luzes mutantes, acendendo
a água, deixando entrever no espelho noturno
as figuras minúsculas e curiosas dos pedalinhos. Todo
um mundo de beleza que sempre atiçou minha imaginação,
enquanto tentava pensar em como é a vida
35 dos homens que dormem dentro daquela engrenagem,
por entre os ferros que sustentam milhares de pequenas
lâmpadas.
Tudo isso talvez estivesse passando na mente
de meu amigo naqueles segundos de silêncio – ou
40 terá sido na minha própria?
O silêncio continuava. Meu amigo devia estar
chocado. Eu, já nem tanto. Tenho procurado me acostumar.
Afinal, é bom ter um shopping tão pertinho, com
teatro, cinemas, uma livraria querida. A princípio, achava
45 que jamais iria lá, mas aos poucos fui me conformando.
Hoje até passeio por suas lojas, faço ali as
compras de última hora, pela conveniência de ter tudo
aberto até mais tarde – embora ainda continue sempre
dando preferência às lojas de rua.
50 Com o passar dos anos, até já esqueci o inferno
inferno
que foi a construção do shopping, o metralhar
de mil britadeiras ao mesmo tempo, o som surdo do
bate-estacas, o estalar dos metais, a poeira fina, o
cheiro de piche, o dia todo, de manhã à noite, dia após
55 dia, semana após semana, meses e meses, um ano
depois do outro. Foram sete anos. Sete anos, como
no sacrifício do pastor que servia a Labão. Sete anos
vendo a pedreira da minha infância sendo raspada,
retalhada e finalmente morta, sem piedade. A pedreira
60 aonde, no início dos anos 1960, eu ia com meu
irmão e seus amigos para soltar pipa. Se fecho os
olhos, quase posso sentir o contato morno da pedra
que guardava o sol, o cheiro do capim balançando ao
vento. Mas tudo isso acabou, paciência. O Leblon
65 mudou, o mundo mudou, o que fazer? Não gosto de
saudosismo. Há tantas coisas boas por aí, não é?
Do outro lado do fio, meu amigo continuava
mudo. E então falou:
– Você perdeu... o quê?
70 – Perdi a vista – repeti. – Acho que ainda não
tinha contado. Ou tinha?
E só então me dei conta de que a frase guardava
dois significados: aquilo poderia querer dizer que
eu perdera a visão. Isso explicaria o silêncio prolongado
75 dele. Então me apressei a completar:
– Estou falando do shopping que construíram
aqui. Não dá mais para ver a Lagoa da minha janela.
Meu amigo riu, eu também. E acabamos falando
daquele provérbio chinês, do homem que, reclamando
80 de não ter sapatos, encontra um que não
tem pés. Desliguei o telefone e dei um suspiro. Que
bom que só preciso de óculos para leitura. E quando
quiser ver a Lagoa, ainda posso ir até suas margens
e encher os olhos.
SEIXAS, Heloisa. In Seleções, jun.2009.
Dentre as formas verbais destacadas, aquela que pode ser substituída, no texto, pela alternativa apresentada à sua direita, mantendo-se o sentido e a correção gramatical, é:
a)
“Estava falando...” (L. 1) – falei. |
b)
“...tinha sido construído,” (L. 9) – foi construído. |
c)
“Tenho procurado...” (L. 42) – procurei . |
d)
“...perdera...” (L. 74) – tinha perdido. |
e)
“...explicaria...” (L. 74) – havia explicado. |
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