1 Às vezes, eu sinto a angústia de um menino perdido numa multidão. Vivemos hoje no Brasil um período inusitado de estabilidade política permeada pelas superimposições 4 promovidas pelo casamento entre hierarquias aristocráticas ― que, em todas as sociedades (e sobretudo na escravidão, como percebeu o seu teórico mais sensível, Joaquim Nabuco), têm 7 como base a amizade e a simpatia pessoal ― e pelo individualismo moderno relativamente igualitário, que demanda burocracia e, com ela, uma impecável, abrangente e 10 inatingível impessoalidade. O hibridismo resultante pode ser negativo ou positivo. Pelo que capturo, o hibridismo é sempre mal visto porque ele 13 não cabe no modo ocidental de pensar. Provam isso as Cruzadas, a Inquisição, o Puritanismo, as Guerras Mundiais, o Holocausto e a exagerada ênfase na purificação e na eugenia ― 16 na coerência absoluta entre gente, terra, língua e costumes, típicas do eurocentrismo. A mistura corre do lado errado e tende a derrapar como um carro dirigido por jovens bêbados 19 quando saem da balada. Como gostamos de brincar com fogo, estamos sempre a um passo da legitimação da violência, justificada como a voz 22 dos oprimidos que ainda não aprenderam a se manifestar corretamente. E como fazê-lo se jamais tivemos um ensino efetivamente igualitário ou instrumental para o igualitarismo 25 numa sociedade cunhada pelo escravismo e por uma ética de condescendência pelos amigos e conhecidos? Pressinto uma enorme violência no nosso sistema de 28 vida. Temo que ela venha a ocupar um território ainda mais denso e seja usada para legitimar outras violências tanto ou mais brutais do que o quebra-quebra hoje redefinido como 31 “manifestações”, protestos que começam como demandas legítimas e, infiltrados, tornam-se quebra-quebras. Qual é o lado a ser tomado se ambos são legítimos e, como é óbvio, 34 dizem alguma coisa como tudo o que é humano? Estou, pois, um tanto perdido e um tanto achado nessa encruzilhada entre demandas legais e prestígios pessoais. Entre 37 patrimonialismo carismático e burocracia, os quais sustentam o “Você sabe com quem está falando?” ― esse padrinho do “comigo é diferente”, “cada caso é um caso”, “ele é meu 40 amigo”, “você está errado mas eu continuo te amando”... E por aí vai numa sequência que o leitor pode inferir, deferir ou embargar.
Roberto da Mata. Achados e perdidos. In: O Estado de S.Paulo, São Paulo, 23/10/2013 (com adaptações).
Com base nas ideias do texto, assinale a opção correta.
a)
Conforme demonstrado no texto, o hibridismo legitima a violência na sociedade brasileira, marcada pela presença de uma população oprimida |
b)
De acordo com o texto, há raízes históricas evidentes para a maneira segundo a qual os brasileiros não conseguem conceber, na prática cotidiana, o igualitarismo. |
c)
Infere-se da leitura do texto que a burocracia e o pessoalismo no Brasil são absolutamente excludentes. |
d)
O autor do texto manifesta-se contrário à miscigenação da sociedade, caracterizada por ele como hibridismo "mal visto" (l.12) |
e)
Segundo o autor do texto, o principal problema do país resulta do longo período de estabilidade política, que permite que quebra-quebra seja entendido como manifestação. |
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