1 Pedi ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro que falasse sobre a ideia que o projetou. A síntese da metafísica dos povos “exóticos” surgiu em 1996 e ganhou o nome de 4 “perspectivismo ameríndio”. Fazia já alguns anos, então, que o antropólogo se ocupava de um traço específico do pensamento indígena nas 7 Américas. Em contraste com a ênfase dada pelas sociedades industriais à produção de objetos, vigora entre esses povos a lógica da predação. O pensamento ameríndio dá muita 10 importância às relações entre caça e caçador — que têm, para eles, um valor comparável ao que conferimos ao trabalho e à fabricação de bens de consumo. Diferentes espécies animais 13 são pensadas com base na posição que ocupam nessa relação. Gente, por exemplo, é, ao mesmo tempo, presa de onça e predadora de porcos. 16 Pesquisas realizadas por duas alunas de Viveiros de Castro, na mesma época, com diferentes grupos indígenas da Amazônia, chamavam a atenção para outra característica 19 curiosa de seu pensamento: de acordo com os interlocutores de ambas, os animais podiam assumir a perspectiva humana. Um levantamento realizado então indicava a existência de ideias 22 semelhantes em outros grupos espalhados pelas Américas, do Alasca à Patagônia. Segundo diferentes etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros como gente. E enxergavam os 25 humanos, seus predadores, como onça. As onças, por sua vez, viam a si mesmas e às outras onças como gente. Para elas, contudo, os índios eram tapires ou pecaris — eram presa. 28 Ser gente parecia uma questão de ponto de vista. Gente é quem ocupa a posição de sujeito. No mundo amazônico, escreveu o antropólogo, “há mais pessoas no céu 31 e na terra do que sonham nossas antropologias”. Ao se verem como gente, os animais adotam também todas as características culturais humanas. Da perspectiva de 34 um urubu, os vermes da carne podre que ele come são peixes grelhados, comida de gente. O sangue que a onça bebe é, para ela, cauim, porque é cauim o que se bebe com tanto gosto. 37 Urubus entre urubus também têm relações sociais humanas, com ritos, festas e regras de casamento. Tudo se passa, conforme Viveiros de Castro, como se 40 os índios pensassem o mundo de maneira inversa à nossa, se consideradas as noções de “natureza” e de “cultura”. Para nós, o que é dado, o universal, é a natureza, igual para todos os 43 povos do planeta. O que é construído é a cultura, que varia de uma sociedade para outra. Para os povos ameríndios, ao contrário, o dado universal é a cultura, uma única cultura, que 46 é sempre a mesma para todo sujeito. Ser gente, para seres humanos, animais e espíritos, é viver segundo as regras de casamento do grupo, comer peixe, beber cauim, temer onça, 49 caçar porco. Mas se a cultura é igual para todos, algo precisa mudar. E o que muda, o que é construído, dependendo do 52 observador, é a natureza. Para o urubu, os vermes no corpo em decomposição são peixe assado. Para nós, são vermes. Não há uma terceira posição, superior e fundadora das outras duas. Ao 55 passarmos de um observador a outro, para que a cultura permaneça a mesma, toda a natureza em volta precisa mudar.
Rafael Cariello. O antropólogo contra o Estado. In: Revista piauí, n.º 88, jan./2014 (com adaptações)
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