Muita gente culpa os meios de comunicação por disseminar e incentivar,
através de programas e notícias, a violência no mundo. A tevê então é a principal
acusada deste malefício à sociedade.
Acontece que os meios de comunicação são considerados, por estas mesmas
5 pessoas, como causa de alguma coisa e não reflexo e causa ao mesmo tempo, num
processo interativo, como pessoalmente creio ocorrer. Quer dizer: a tevê não é a
causa das coisas, das transformações, dos fatos. Não. Ela é veículo. É meio pelo
qual as coisas, as transformações e os fatos chegam aos indivíduos.
Pois bem, é neste ponto que três temas passam a ser profundamente
10 entrelaçados e discutidos, adquirindo a maior importância em qualquer sociedade:
criança – violência e televisão.
As crianças, estas estão aí. No Brasil, sessenta por cento da população têm
menos de vinte anos de idade, o que desde logo dá a devida magnitude do
problema.
15 A violência também está aí mesmo. Com uma diferença: ao longo da história
do mundo ela sempre esteve presente só que lá longe. Agora, graças aos meios de
comunicação são as pessoas, em suas casas, as que estão presentes a ela. As
gerações anteriores, para saber das guerras, ou as viam "idealizadas",
glamourizadas e heroicizadas no cinema, ou liam a respeito nos livros de história.
20 Hoje, ninguém idealiza nada. Vê. Vê, via satélite. Não ouve falar dos horrores.
Participa deles. Por outro lado, a violência aumenta em proporções assustadoras,
tanto no resto do mundo como aqui bem perto, em cada esquina.
Pergunto eu: será só o incentivo à violência o resultado único desse processo
de informação em escala mundial?
25 É preciso lembrar, por exemplo, que muito da campanha de opinião pública
contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos deveu-se à cobertura instantânea da
televisão. Nada é estático. O que divulga provoca também resistências. Hoje as
pessoas deixaram de ter a violência como algo sempre distante, algo que "só
acontece com os outros". Todos estão ameaçados nesta bolota azul em que
30 vivemos. Logo, repudiar a violência é tarefa comum.
Não é verdade, igualmente, que os meios de comunicação só disseminem a
violência. Quem acompanha de boa-fé, assiste ao alerta diário destes meios contra
todas as formas de violência e as ameaças de destruição tanto da terra quanto da
espécie, no caso de persistirem as ameaças nucleares e as afrontas ecológicas.
35 Ninguém aguenta tensões prolongadas. A humanidade está podendo se ver a
cada dia. Está podendo julgar e avaliar a que leva os seus desvarios. Está se
conhecendo em seus máximos e em seus mínimos, em suas grandezas e em suas
patologias, como nunca antes da televisão fora possível. Está secretando os
anticorpos à violência e as atitudes necessárias à sua sobrevivência. Está
40 consciente de que a ameaça é conjuntural. De que ou o homem se entende e
redescobre o Direito estabelecendo seu primado, ou se aniquila: no macro do
mundo ou no micro de cada comunidade.
E as crianças? Elas estão assistindo a tudo isso. Elas, por definição, são mais
saudáveis, mais instintivas, mais purificadas. Ninguém vai lhes contar histórias
45 sobre as guerras: elas as acompanham. Sobre os atentados brutais: elas os vêem.
E no segredo de sua psique, ainda plena dos instintos vitais, seguramente elaboram
os mecanismos de defesa necessários à preservação da vida.
É analisando estes assuntos que me recordo de uma tese, estranha, mas
séria e digna de reflexão, de um amigo meu, médico, homem de idade, sabedoria e
50 ciência. Diz ele que nunca como hoje a humanidade pôde conviver tão perto da
loucura. Ela entra diariamente através dos noticiários, dos fatos e das imagens,
enfim, da comunicação moderna. E acrescenta: só quando o ser humano aceitar
conviver com seu lado louco ele começa a se aproximar da cura. Negar a loucura é
tão louco quanto ela. Aceitá-la como dado desse eterno conflito em superação no
55 caminho absoluto que é o homem significa poder entrar em relação com a doença e
só assim tratá-la, superá-la, dimensioná-la, aproveitar o fluxo de sua energia
desordenada para a tarefa de reconstrução humana.
Desnecessário dizer que ele é psiquiatra. Como necessário é concluir o artigo
dizendo: concordando ou não, sua tese merece reflexão. E perguntando com pavor:
60 será mesmo necessário pagar um preço existencial tão alto para se ter esperança?
Que ela venha com as crianças deste país que sei (por intuição) serão os pontais de
uma civilização espiritualizada que há de emergir (já está começando) das cinzas da
violência, se possível antes da generalização desta como única forma de resolver os
conflitos e as diferenças entre os homens. Eros e Tanatos, sempre. Mas o amor é
65 maior que o ódio.
(In: Dias Carneiro, Agostinho & Farias, A. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1979. p. 11-2.)
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