Multidões de mascarados e maquiados com cores alegóricas das nacionalidades envolvidas nas disputas da Copa do Mundo falam por esse meio uma linguagem que simbolicamente quer dizer muito mais do que pode parecer. Trata-se de um ritual cíclico de renovação de identidades nacionais expressas nos ornamentos e paramentos do que é funcionalmente uma nova religião no vazio contemporâneo. Aqui no Brasil as manifestações simbólicas relacionadas com o futebol e seus significados têm tudo a ver com o modo como entre nós se difundiu a modernidade, nas peculiaridades de nossa história social.
Embora não fosse essa a intenção, rapidamente esse esporte assumiu entre nós funções sociais extrafutebolísticas que se prolongam até nossos dias e respondem por sua imensa popularidade. A República, em que todos se tornaram juridicamente brancos, sucedeu a monarquia segmentada em senhores e escravos, brancos e negros, todos acomodados numa dessas duas identidades. A República criou o brasileiro genérico e abstrato. O advento do futebol entre nós coincidiu com a busca de identidades reais para preencher as incertezas dessa ficção jurídica. Clubes futebolísticos de nacionalidades, de empresas, de bairros, de opções subjetivas disfarçaram as diferenças sociais reais e profundas, sobrepuseram-se a elas e tornaram funcionais os conflitos próprios da nova realidade criada pela abolição da escravatura.
No futebol há espaço para acomodações e inclusões, mesmo porque, sem a diversidade de clubes e sem a competição, o futebol não teria sentido. O receituário da modernidade inclui, justamente, esses detalhes de convivência com a diversidade e com a rotatividade dos que triunfam. Nela, a vida recomeça continuamente; depois da vitória é preciso lutar pela vitória seguinte.
O futebol, essencialmente, massificou e institucionalizou a competição e a concorrência, elevou-as à condição de valores sociais e demonstrou as oportunidades de vitória de cada um no rodízio dos vitoriosos. Nele, a derrota nunca é definitiva nem permanente. Por esse meio, o que era mero requisito do funcionamento do mercado e da multiplicação do capital tornou-se expressamente um rito de difusão de seus princípios no modo de vida, na mentalidade e no cotidiano das pessoas comuns.
É nesse sentido que o futebol só pode existir em sociedades competitivas e de antagonismos sociais administráveis. Fora delas, não é compreendido. Há alguns anos, um antropólogo que estava fazendo pesquisa com os índios xerentes, de Goiás, surpreendeu-se ao ver que eles haviam adotado entusiasticamente o futebol. Com uma diferença: os 22 jogadores não atuavam como dois times de 11, mas como um único time jogando contra a bola, perseguida em campo todo o tempo. Interpretaram o futebol como ritual de caça. Algo próprio de uma sociedade tribal e comunitária.
(Adaptado de José de Souza Martins. O Estado de S. Paulo, aliás, J7, 4 de julho de 2010)
É correto perceber no texto que o autor:
a)
contesta a noção de que o futebol, com seu ritual próprio, possa ser considerado símbolo de uma única nação ou região geográfica. |
b)
assinala a interferência dos rituais religiosos numa atividade esportiva, que deveria se caracterizar por linguagem e normas específicas. |
c)
critica a interferência de interesses financeiros e de mercado que cercam o futebol, extrapolando seus objetivos originais, de esporte e lazer. |
d)
defende a ideia de que o futebol é democrático, ao permitir a ascensão social, independentemente de eventuais desigualdades. |
e)
aponta a transformação de um esporte, de início democrático, em elemento primordial de afirmação de valores pessoais e de nacionalidades distintas. |
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