Texto I, para responder à(s) questão(ões):
1 Ao mesmo tempo, ressurge a oposição razão e fé,
que parecia remota. O país mais desenvolvido do mundo,
aquele em que a ciência e a tecnologia mais contribuem para
4 gerar riqueza, é também — entre as poucas dezenas de
nações que se situam no pelotão de frente da economia e do
conhecimento — aquele em que a maior parte da população
7 acredita exatamente naquilo que não dispõe de base
científica alguma. Em nenhum país, o criacionismo é tão forte
quanto nos Estados Unidos. No entanto, inexiste qualquer
10 fundamento científico para ele. Temos, assim, ali onde a
interação entre o conhecimento científico e a economia
constrói a massa de sucesso mais forte da história, uma
13 profunda descrença, ou ignorância, da população a respeito
daquilo que constitui a base mesma de seu êxito — ou a
base mesma de sua prática.
16 Faz-se nos Estados Unidos o maior volume de
ciência do mundo. O trabalho, nos Estados Unidos, é — em
termos absolutos — incomparavelmente mais marcado pelo
19 conhecimento científico do que em qualquer outro país do
mundo, e, em termos relativos, dividido pela população, essa
sua qualificação superior também ocupa posição de
22 destaque. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, a agenda
pública comporta uma adesão a superstições, a crenças que
a ciência moderna desmontou. Ou seja, eles são o país que
25 melhor mostra um duplo papel da ciência, a exigir um
balanço sério e medidas audazes: ela muitas vezes aprimora
nosso fazer, mas é impotente para melhorar o nosso agir. A
28 ciência é incorporada, como tecnologia e mesmo como
inovação, nas fábricas, nas plantações, nos serviços, mas a
teoria que nela está, a semente de inquietação e de
31 inteligência que nela pulsa, não chega à consciência dos
milhões e talvez bilhões de pessoas que dela fazem uso.
Usa-se a ciência, aprende-se com os resultados da ciência,
34 mas o espírito científico — ou os inúmeros e conflitantes
espíritos científicos — se defrontam com mentes
impermeáveis a seu trabalho de erosão de mitos e de
37 construção de um mundo diferente.
É preciso explorar um pouco a diferença, que vem
dos filósofos gregos mas que foi bem rememorada por
40 Hannah Arendt, entre fazer e agir. A fabricação é o modo
pelo qual os modernos concebem o mundo da prática. Esta
perde uma dimensão que era forte entre os antigos, à qual
43 chamaremos aqui agir: o mundo humano é o da práxis. Nele
se praticam atos que têm o homem como autor e como
destinatário, como sujeito e como objeto. Por isso mesmo, o
46 homem nunca é puro sujeito nem mero objeto, quando lida
com seu próximo: ele tem, neste último, alguém que lhe pode
retrucar, que pode protestar contra o que ele diz ou faz. No
49 entanto, o segredo da modernidade consistiu em uma
mudança dessa relação. Dizendo de outro modo, a Idade
Média cede lugar à Renascença quando a oposição entre vita
52 activa e vita contemplativa, entre negotium e otium é
substituída por outros papéis. Com efeito, os humanistas
discutem se é preferível a vida contemplativa do sábio ou do
55 cientista, que prefere um otium (geralmente cum dignitate)
que lhe permita almejar a paz interna e a verdade do mundo
exterior, ou a vida ativa de quem se debruça sobre os
58 negócios da cidade e contribui para construir uma sociedade
melhor.
Exemplar desse debate é a primeira parte da Utopia,
61 de Thomas Morus, como se sabe escrita depois da segunda
parte. Nesta última, expõe-se como seria a ilha de Utopia, o
primeiro regime “comunista” do mundo moderno. Na primeira
64 parte, porém, redigida um ano após a segunda, dá-se um
contexto para aquela exposição. Aparentemente, o contexto
fica aquém do texto, a moldura é menos que a pintura.
67 Quando se fala da Utopia, costuma-se citar, da primeira
parte, a passagem terrível em que, criticando a apropriação
privada e desigual das antigas terras comunais para a
70 pastagem de carneiros, afirma-se que estes últimos, de
animais inocentes, se tornaram devoradores de homens — a
primeira crítica filosófica às enclosures, que mudaram a
73 paisagem inglesa e as relações sociais nos séculos que
precedem a Renascença e que a ela sucedem; e também, da
mesma parte, a crítica generalizada ao dinheiro e a seu
76 poder; enquanto, da segunda parte, se reflete sobre a
proposta de uma sociedade utópica (de Utopia, literalmente
“nenhum lugar”), banhada por um rio sem água (Anidro é seu
79 nome) e relatada pelo português Rafael Hitlodeu (“autor de
disparates”), mas talvez, dizem alguns, eutópica (“lugar
belo”). Mas o que nos interessa aqui é outro ponto.
82 O que se debate na primeira parte é se o intelectual
deve participar da coisa pública, ajudando a melhorar a vida
dos outros, ou se esse empenho seria inútil e o que melhor
85 lhe convém é a contemplação: não mais a das verdades
celestiais, mas a da tolice humana. Desse rico assunto, o que
aqui nos interessa é a substituição moderna da vida
88 contemplativa e do otium por outro tipo de vida. Mas essa
não é a reedição da vida ativa ou do negotium, embora
pareça com frequência constituir sua caricatura. Pois ao
91 negotium, que era o cuidado com a coisa pública, sucede o
negócio, que é o business, o desinteresse pela res publica e
a animação com a vida privada do empreendedor ou
94 empresário. Daí, também, que a vida ativa se reduza, na
verdade, a um fazer interminável. Para o homem do otium, do
lazer inteligente, a práxis já era algo sem muita condição de
97 se realizar; mas, em seu lugar, o que vem agora é um fazer,
um fabricar, um produzir. A produção típica do otium era uma
autoprodução. Consistia em os humanos se construírem pela
100 reflexão e, eventualmente, pelo diálogo. O mesmo valia em
certa medida para o negotium: este consistia em os humanos
se construírem pela práxis (em) comum. Mas a produção
103 típica do business é uma produção externa, em que, em vez
de cada um construir sua humanidade laboriosamente, ou de
em suas relações ela se constituir, o que se faz e fabrica são
106 objetos externos, nos quais se projeta uma caricatura do
fazer humano.
[...]
Em que medida o conhecimento científico aprimora
109 o sentido ético das pessoas, os valores que elas assumem?
Sem dúvida, podemos dizer que o domínio da razão e o da fé
são distintos; que um cientista racionalíssimo em seu
112 laboratório pode, perfeitamente, orar e adorar a Deus; mas
não é disso que se trata. O cientista racional, se não for
esquizofrênico, considerará em sua atividade científica
115 alguns valores essenciais que se ligam a sua religião -
buscará ser bom, compassivo, seja o que for. Da mesma
forma, o religioso culto, ainda que aceite que em sua religião
118 - como em qualquer outra - há algo incompreensível,
levará em conta em sua ação o que aprendeu com a ciência
e com os avanços de nosso conhecimento. O problema é que
121 esse diálogo, que parece travar-se entre os cultos, não afeta
ou afeta pouco as massas sociais. Estas se beneficiam dos
ganhos científicos no plano do fazer, mas ignoram-nos quase
124 por completo no plano do agir.
Renato Janine Ribeiro. Internet: <http://www.cres2008.org/upload/documentos
Publicos/tendencia/Tema02/Renato%20Janine%20Ribeiro.doc>
(com adaptações). Acesso em 20/1/2009
Assinale a alternativa em que a palavra "se" possui a mesma função sintática que em "que se situam no pelotão de frente da economia e do conhecimento" (linhas 5 e 6):
a)
"aprende-se com os resultados da ciência" (linha 33). |
b)
"se defrontam com mentes impermeáveis a seu trabalho de erosão de mitos e de construção de um mundo diferente" (linhas de 35 a 37). |
c)
"Nele se praticam atos que têm o homem como autor e como destinatário" (linhas de 43 a 45). |
d)
"Com efeito, os humanistas discutem se é preferível a vida contemplativa do sábio ou do cientista" (linhas de 53 a 55). |
e)
"Exemplar desse debate é a primeira parte da Utopia, de Thomas Morus, como se sabe escrita depois da segunda parte." (linhas de 60 a 62). |
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