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Comentários / Cientec - RS - Advogado - MS Concursos - 2010 - Prova Objetiva


Miss Dollar

Leia atentamente alguns trechos adaptados do texto “Miss Dollar”, de Machado de Assis, que relata como uma cachorrinha pôde despertar  a paixão do jovem médico Mendonça por  Margarida,  uma triste viúva que não acredita mais no amor. O texto é dividido pelo autor em oito capítulos que não foram aqui reproduzidos.

CAPÍTULO PRIMEIRO

Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por  outro lado,  sem a apresentação de Miss Dollar,  seria o autor  obrigado a longas digressões,  que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar­-lhes Miss Dollar.

Se o leitor  é rapaz e dado ao gênio melancólico,  imagina que Miss Dollar é uma inglesa pálida e delgada,  escassa de carnes e de sangue, abrindo à flor do rosto dois grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranças loiras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma criação de Shakespeare; deve ser o contraste do roastbeef britânico, com que se alimenta a liberdade do Reino Unido. (...) 

Falha desta vez a proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadelinha galga. (...) Miss Dollar, apesar  de não ser mais que uma cadelinha galga, teve as honras de ver  o seu nome nos papéis públicos,  antes de entrar  para este livro. O Jornal do Comércio e o Correio Mercantil publicaram nas colunas dos anúncios as seguintes linhas reverberantes de promessa: 

“Desencaminhou­-se uma cadelinha galga, na noite de ontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quiser levar à Rua de Mata­cavalos n.º... receberá duzentos mil-­réis de recompensa. (...)."

Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos mil-­réis, e tiveram a felicidade de ler aquele anúncio, andaram nesse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver  se davam com a fugitiva Miss Dollar. (...) 

Dr. Mendonça encontrou a cachorra (...).

Quais as razões que induziram o Dr. Mendonça a fazer coleção de cães, é coisa que ninguém podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paixão por esse símbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavam antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendonça achou que era de boa guerra adorar os cães.

Fossem quais fossem as razões, o certo é que ninguém possuía mais bonita e variada coleção do que ele. Tinha-os de todas as raças, tamanhos e cores. Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melancólico. Quase se pode dizer que, no espírito de Mendonça, o cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo.

O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmíssimo esmero. De flores gostava também; mas gostava delas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmim ou prender um canário parecia-lhe idêntico atentado. (...)

No dia seguinte, lendo os jornais, Mendonça viu o anúncio transcrito acima, prometendo duzentos milréis a quem entregasse a cadelinha fugitiva. A sua paixão pelos cães deu-lhe a medida da dor que devia sofrer o dono ou dona de Miss Dollar , visto que chegava a oferecer duzentos mil-réis de gratificação a quem apresentasse a galga. Consequentemente resolveu restituí-la, com bastante mágoa do coração. (...)

Foi devolver a cachorra, a casa era bonita. (...) Veio um moleque saber quem estava; Mendonça disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expansão do rosto do moleque, que correu a anunciar a boa nova. Miss Dollar , aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunhase Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou dizendolhe que subisse e entrasse para a sala. (...)

— Queira ter a bondade de sentar-se, disse ela designando uma cadeira à Mendonça.

— A minha demora é pequena, disse o médico sentando-se. Vim trazer-lhe a cadelinha que está comigo desde ontem...

— Não imagina que desassossego causou cá em casa a ausência de Miss Dollar...

— Imagino, minha senhora; eu também sou apreciador de cães, e se me faltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar ...

— Perdão! interrompeu a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, é de minha sobrinha.

— Ah!...

— Ela aí vem.

Mendonça levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em questão. Era uma moça que representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente. (...) Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos verdes eram para ele a mesma coisa que a fênix dos antigos.

(...) Mendonça cumprimentou respeitosamente a recém-chegada, e esta, com um gesto, convidou-o a sentar-se outra vez.

— Agradeço-lhe infinitamente o terme restituído este pobre animal, que me merece grande estima, disse Margarida sentando-se.

— E eu dou graças a Deus por tê-lo achado; podia ter caído em mãos que o não restituíssem. (...)

Mendonça apaixona-se por Margarida e relata ao amigo:

— Compreendes agora, disse Mendonça, que eu preciso ir à casa dela; tenho necessidade de vê-la; quero ver se consigo...

Mendonça estacou.

— Acaba! disse Andrade; se consegues ser amado. Por que não? Mas desde já te digo que não será fácil.

— Por quê? — Margarida tem rejeitado cinco casamentos.

— Naturalmente não amava os pretendentes, disse Mendonça com o ar de um geômetra que acha uma solução.

— Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu Andrade, e não era indiferente ao último.

— Houve naturalmente intriga.

— Também não. Admiras-te? É o que me acontece. É uma rapariga esquisita. Se te achas com força de ser o Colombo daquele mundo, lança-te ao mar com a armada; mas toma cuidado com a revolta das paixões, que são os ferozes marujos destas navegações de descoberta. (...)

(Disponível em: http://machado.mec.gov.br/, acesso: 01/07/2010)

Questão:

Deve-se relacionar a característica de Machado de Assis dialogar literalmente com seu leitor à seguinte afirmação de Koch e Elias (2008, p.7):

Resposta errada
a)

O leitor valida ou não as hipóteses formuladas.

Resposta errada
b)

O leitor precisa ter muito mais do que simplesmente possuir conhecimento linguístico para fazer uma boa leitura.

Resposta errada
c)

O texto não é lugar de interação de sujeitos sociais, pois a leitura é um ato solitário, não há como o leitor dialogar com o autor.

Resposta errada
d)

Há, em todo e qualquer texto, uma gama de implícitos que o leitor deve desvendar com a ajuda das pistas que o escritor lhe dá.

Resposta correta
e)

O leitor participa, de forma ativa, da construção de sentido do texto, havendo uma interação com o escritor e com o texto por meio da linguagem.

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