No tempo de andarilho Prospera pouco no Pantanal o andarilho. Seis meses, durante a seca, anda. Remói caminhos e descaminhos. Abastece de perna as distâncias. E, quando as estradas somem, cobertas por águas, arrancha. O andarilho é um antipiqueteiro por vocação. Ninguém o embuçala. Não tem nome nem relógio. Vagabundear é virtude atuante para ele. Nem é um idiota programado, como nós. O próprio esmo é que o erra. Chega em geral com escuro. Não salva os moradores do lugar. Menos por deseducado. Senão por alheamento e fastio. Abeira-se do galpão, mais dois cachorros, magros, pede comida, e se recolhe em sua vasilha de dormir armada no tempo. Cedo, pela magrez dos cachorros que estão medindo o pátio, toda a fazenda sabe que Bernardão chegou. “Venho do oco do mundo. Vou para o oco do mundo.” É a única coisa que ele adianta. O que não adianta. (...) Enquanto as águas não descem e as estradas não se mostram, Bernardo trabalha pela bóia. Claro que resmunga. Está com raiva de quem inventou a enxada. E vai assustando o mato como um feiticeiro. Os hippies o imitam por todo o mundo. Não faz entretanto brasão de seu pioneirismo. Isso de entortar pente no cabelo intratável ele pratica de velho. A adesão pura à natureza e a inocência nasceram com ele. Sabe plantas e peixes mais que os santos. Não sei se os jovens de hoje, adeptos da natureza, conseguirão restaurar dentro deles essa inocência. Não sei se conseguirão matar dentro deles a centopéia do consumismo. Porque, já desde nada, o grande luxo de Bernardo é ser ninguém. Por fora é galalau. Por dentro não arredou de criança. É ser que não conhece ter. Tanto que inveja não se acopla nele.
Manoel de Barros. Livro de pré-coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal. 2.a ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 47-8.
De acordo com o texto, o andarilho:
a)
percebe que as pessoas dos lugares aonde chega têm expectativa do aparecimento de um salvador, mas ele mantém-se alheio às crenças locais. |
b)
dispensa qualquer tipo de relação com os habitantes dos lugares por onde passa porque não é "um idiota programado". |
c)
não cumprimenta os moradores do lugar onde "arrancha" porque se mantém alheio e considera enfadonho o ato social do cumprimento. |
d)
é um cidadão típico que inspira todos os jovens que já nasceram valorizando a natureza e cultuando a inocência. |
e)
manifesta atitudes infantis que contrastam com sua aparência robusta porque sua meta é ser ninguém em um mundo que só conhece o ter. |
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