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Comentários / SEFAZ - Secretaria de Estado de Fazenda - Rio de Janeiro - Fiscal de Rendas - FGV - Fundação Getúlio Vargas - 2009 - Prova Objetiva 1


Freud, o Peixeiro e os Excluídos

Texto II


		Há anos compro peixe na mesma feira com o mesmo
	peixeiro. Disse a ele outro dia: Quando crescer, quero ser
	peixeiro. Devolveu a provocação: “Boa escolha, professor.
	É a profissão do id.” Fiquei uma semana intrigado. Enfim,
05 	um peixeiro freudiano no Rio de Janeiro! Um analista
	excêntrico que tem por hobby limpar escamas! Na feira
	seguinte, perguntei: Ok, peixeiro é a profissão do id. Mas
	como assim? “O professor não conhece a Bíblia? Cristo
	precisava de apóstolos, chamou os pescadores e disse:
10 	Ide e pregai o evangelho a toda criatura!”.
		Um sujeito bem intencionado quer dizer uma coisa, o
	freguês entende outra. Quando dizemos “direitos humanos”,
	por exemplo, o que entendem os peixeiros, torneiros
	mecânicos, políticos profissionais, investigadores de
15 	polícia, personal trainings e membros de outras profissões?
	Não sabemos, mas deveríamos.
		A luta social não acontece só na “política” – partidos,
	parlamentos, sindicatos etc. Acontece também no interior da
	linguagem. Os desentendimentos por causa das palavras
20 	são, às vezes, desentendimentos sociais.
		Não se sabe, por exemplo, quem inventou a palavra
	“excluídos” para designar pobres. Os movimentos sociais
	incorporaram a palavrinha sem refletir. A criança que não
	tem escola – está “excluída” da escola. O trabalhador que
25 	não tem emprego – está “excluído” do emprego. A palavra
	designa um fato real, mas o que quer dizer? Que a sociedade
	tem um lado de dentro e outro de fora. Como se fosse um
	trem correndo pela Baixada Fluminense (digamos): nós que
	estamos dentro olhamos pela janela e vemos as casas e
30 	pessoas que estão de fora.
		Acontece que a sociedade não é um trem que corre pela
	Baixada. A sociedade é o trem e as pessoas que vemos pela
	janela do trem. A sociedade não tem lado de fora. O que está
	fora da sociedade seria desumano, pois ela nada mais é
35 	que a relação entre os humanos. Não formamos sociedade
	com os cães, os mosquitos, os micos-leões-dourados. A
	única possibilidade de um ser humano ser excluído dela é
	deixar de ser humano. Até mesmo a nossa relação com a
	natureza e os bichos se faz por meio da sociedade.
40 		O leitor já viu onde quero chegar. Chamar alguém de
	“excluído” é lhe retirar a condição de humano. Ora, os
	movimentos sociais, que lutam para estender os direitos
	humanos a todas as pessoas, querem precisamente o
	contrário: querem humanizar ricos e pobres, negros e
45 	brancos, homens de bem e criminosos, bonitos e feios.
	Como é então que usam, e abusam, da palavra “excluídos”?
	Como é que admitem que a sociedade tem um lado de
	dentro (onde estão os incluídos) e um lado de fora (onde
	estão os “excluídos”)? Como é que se deixam enredar por
50 	esse pântano de palavras, a ponto de negar com a boca o
	que fazem com o coração?
		Alguém os enredou. Quem foi? Talvez o Polvo de Vieira.
	“O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a
	primeira traição e roubo que faz é a luz, para que não se
55 	distinga as cores”. Não é inocente chamar os explorados
	de nossa sociedade de “excluídos”. Primeiro, porque,
	sutilmente, se está negando aos pobres a humanidade que
	os outros teriam. Segundo porque se está desvinculando
	a pobreza (“exclusão”) da riqueza (“inclusão”). Por esse
60 	modo de pensar, aparentemente inocente, os ricos nada
	têm a ver com os pobres. Estes são problema do governo,
	“que devia dar escola, saúde e segurança aos excluídos” e
	dos políticos “que só sabem roubar”.
		Temos até hoje feira de trabalhadores: centenas de
65 	homens fortes acocorados esperando o “gato” selecionar
	os que vão trabalhar. O salário obedece à lei da oferta e
	procura: sobe se os acocorados forem poucos, desce se
	forem muitos.
		Como lidar com o número crescente de pessoas que
70 	nascem, vivem e morrem sem trabalho? O Brasil inventou
	várias “soluções” para esse problema do desenvolvimento.
	Uma delas foi o padrão popular de acumulação: o Se Virar.
	Os que se viram não estão excluídos de nada. Pertencem a
	um padrão de acumulação que compete há cem anos com
75 	o padrão capitalista.
		Na minha feira, há muitos vendedores de limão. Alguns
	vendem outras coisas. São “excluídos”? Produzem mais-
	valia como qualquer outro proletário. Desejam roupas, tênis,
	bailes, prestígio, mulheres de revista, adrenalina, alucinação.
80 	Têm desejos e compram a sua satisfação possuindo a
	imagem (ou a simulação) dos objetos do desejo. Se tiverem
	competência e sorte, se tornarão vendedores de objetos
	(como limão) ou de sensações (como cocaína). Alguns
	abraçarão a profissão do Ide. De um jeito ou de outro, todos
85 	estão incluídos.

(Adaptação do texto de SANTOS, Joel Rufino dos. Jornal do Brasil, domingo, 11/03/2001.)

 

Questão:

Com relação à construção do sentido do texto II, analise as afirmativas a seguir:

I. O caso do peixeiro, citado no primeiro parágrafo, constitui exemplo e motivação para o desenvolvimento da ideia de que as palavras podem adquirir valores sociais distintos, como ocorre com o vocábulo excluídos.

II. A utilização do vocábulo excluídos para designar pobres é compatível com a concepção de que a sociedade se configura na relação entre humanos.

III. Os vocábulos id, ide, direitos humanos e excluídos - incompreendidos por usuários da língua portuguesa, especialmente aqueles desprovidos de escolaridade - revelam a luta social presente também na política.

Assinale:

Resposta correta
a)

se somente a afirmativa I estiver correta.

Resposta errada
b)

se somente a afirmativa II estiver correta.

Resposta errada
c)

se somente a afirmativa III estiver correta.

Resposta errada
d)

se somente as afirmativas I e III estiverem corretas.

Resposta errada
e)

se todas as afirmativas estiverem corretas.

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