Texto II
Há anos compro peixe na mesma feira com o mesmo peixeiro. Disse a ele outro dia: Quando crescer, quero ser peixeiro. Devolveu a provocação: “Boa escolha, professor. É a profissão do id.” Fiquei uma semana intrigado. Enfim, 05 um peixeiro freudiano no Rio de Janeiro! Um analista excêntrico que tem por hobby limpar escamas! Na feira seguinte, perguntei: Ok, peixeiro é a profissão do id. Mas como assim? “O professor não conhece a Bíblia? Cristo precisava de apóstolos, chamou os pescadores e disse: 10 Ide e pregai o evangelho a toda criatura!”. Um sujeito bem intencionado quer dizer uma coisa, o freguês entende outra. Quando dizemos “direitos humanos”, por exemplo, o que entendem os peixeiros, torneiros mecânicos, políticos profissionais, investigadores de 15 polícia, personal trainings e membros de outras profissões? Não sabemos, mas deveríamos. A luta social não acontece só na “política” – partidos, parlamentos, sindicatos etc. Acontece também no interior da linguagem. Os desentendimentos por causa das palavras 20 são, às vezes, desentendimentos sociais. Não se sabe, por exemplo, quem inventou a palavra “excluídos” para designar pobres. Os movimentos sociais incorporaram a palavrinha sem refletir. A criança que não tem escola – está “excluída” da escola. O trabalhador que 25 não tem emprego – está “excluído” do emprego. A palavra designa um fato real, mas o que quer dizer? Que a sociedade tem um lado de dentro e outro de fora. Como se fosse um trem correndo pela Baixada Fluminense (digamos): nós que estamos dentro olhamos pela janela e vemos as casas e 30 pessoas que estão de fora. Acontece que a sociedade não é um trem que corre pela Baixada. A sociedade é o trem e as pessoas que vemos pela janela do trem. A sociedade não tem lado de fora. O que está fora da sociedade seria desumano, pois ela nada mais é 35 que a relação entre os humanos. Não formamos sociedade com os cães, os mosquitos, os micos-leões-dourados. A única possibilidade de um ser humano ser excluído dela é deixar de ser humano. Até mesmo a nossa relação com a natureza e os bichos se faz por meio da sociedade. 40 O leitor já viu onde quero chegar. Chamar alguém de “excluído” é lhe retirar a condição de humano. Ora, os movimentos sociais, que lutam para estender os direitos humanos a todas as pessoas, querem precisamente o contrário: querem humanizar ricos e pobres, negros e 45 brancos, homens de bem e criminosos, bonitos e feios. Como é então que usam, e abusam, da palavra “excluídos”? Como é que admitem que a sociedade tem um lado de dentro (onde estão os incluídos) e um lado de fora (onde estão os “excluídos”)? Como é que se deixam enredar por 50 esse pântano de palavras, a ponto de negar com a boca o que fazem com o coração? Alguém os enredou. Quem foi? Talvez o Polvo de Vieira. “O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz é a luz, para que não se 55 distinga as cores”. Não é inocente chamar os explorados de nossa sociedade de “excluídos”. Primeiro, porque, sutilmente, se está negando aos pobres a humanidade que os outros teriam. Segundo porque se está desvinculando a pobreza (“exclusão”) da riqueza (“inclusão”). Por esse 60 modo de pensar, aparentemente inocente, os ricos nada têm a ver com os pobres. Estes são problema do governo, “que devia dar escola, saúde e segurança aos excluídos” e dos políticos “que só sabem roubar”. Temos até hoje feira de trabalhadores: centenas de 65 homens fortes acocorados esperando o “gato” selecionar os que vão trabalhar. O salário obedece à lei da oferta e procura: sobe se os acocorados forem poucos, desce se forem muitos. Como lidar com o número crescente de pessoas que 70 nascem, vivem e morrem sem trabalho? O Brasil inventou várias “soluções” para esse problema do desenvolvimento. Uma delas foi o padrão popular de acumulação: o Se Virar. Os que se viram não estão excluídos de nada. Pertencem a um padrão de acumulação que compete há cem anos com 75 o padrão capitalista. Na minha feira, há muitos vendedores de limão. Alguns vendem outras coisas. São “excluídos”? Produzem mais- valia como qualquer outro proletário. Desejam roupas, tênis, bailes, prestígio, mulheres de revista, adrenalina, alucinação. 80 Têm desejos e compram a sua satisfação possuindo a imagem (ou a simulação) dos objetos do desejo. Se tiverem competência e sorte, se tornarão vendedores de objetos (como limão) ou de sensações (como cocaína). Alguns abraçarão a profissão do Ide. De um jeito ou de outro, todos 85 estão incluídos.
(Adaptação do texto de SANTOS, Joel Rufino dos. Jornal do Brasil, domingo, 11/03/2001.)
Com relação à construção do sentido do texto II, analise as afirmativas a seguir:
I. O caso do peixeiro, citado no primeiro parágrafo, constitui exemplo e motivação para o desenvolvimento da ideia de que as palavras podem adquirir valores sociais distintos, como ocorre com o vocábulo excluídos.
II. A utilização do vocábulo excluídos para designar pobres é compatível com a concepção de que a sociedade se configura na relação entre humanos.
III. Os vocábulos id, ide, direitos humanos e excluídos - incompreendidos por usuários da língua portuguesa, especialmente aqueles desprovidos de escolaridade - revelam a luta social presente também na política.
Assinale:
a)
se somente a afirmativa I estiver correta. |
b)
se somente a afirmativa II estiver correta. |
c)
se somente a afirmativa III estiver correta. |
d)
se somente as afirmativas I e III estiverem corretas. |
e)
se todas as afirmativas estiverem corretas. |
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