1 Esgotado por sucessivas batalhas, convencido da inutilidade de seguir lutando e tendo decidido ser preferível capitular a perder não só a liberdade como a vida, no verão de 1520 o rei asteca Montezuma, 5 prisioneiro dos espanhóis, concordou em entregar a Hernán Cortés o vasto tesouro que seu pai, Axayáctl, reunira com tanto esforço, e em jurar lealdade ao rei da Espanha, aquele monarca distante e invisível cujo poder Cortés representava. Comentando a cerimônia, o 10 cronista espanhol Fernando de Oviedo relata que Montezuma chorou o tempo todo, e, apontando a diferença entre o encargo que é aceito voluntariamente por uma pessoa livre e o que é pesarosamente executado por alguém acorrentado, Oviedo cita o poeta 15 romano Marcus Varro, "O que é entregue à força não é serviço, mas espoliação". Segundo todos os testemunhos, o tesouro real asteca era magnífico e ao ser reunido diante dos espanhóis formou três grandes pilhas de ouro 20 compostas, em grande parte, de utensílios requintados, que sugeriam sofisticadas cerimônias sociais: colares intrincados, braceletes, cetros e leques decorados com penas multicoloridas, pedras preciosas, pérolas, pássaros e flores cuidadosamente cinzelados. Essas 25 peças, segundo o próprio Cortés, "além de seu valor, eram tais e tão maravilhosas, que, consideradas por sua novidade e estranheza, não tinham preço, nem é de acreditar que algum entre todos os Príncipes do Mundo de que se tem notícia pudesse tê-las tais, e de tal 30 qualidade". Montezuma pretendia que o tesouro fosse um tributo de sua corte ao rei espanhol. Mas os soldados de Cortés exigiram que o tesouro fosse tratado como butim e que cada um deles recebesse uma parte do 35 ouro. Feita a partilha entre o rei da Espanha, o próprio Cortés e tantos outros envolvidos, chegava-se a cem pesos para cada soldado raso, uma soma tão insignificante diante de suas expectativas que, no fim, muitos se recusaram a aceitá-la. 40 Cedendo à vontade de seus homens, Cortés ordenou aos afamados ourives de Azcapotzalco que convertessem os preciosos objetos de Montezuma em lingotes, em que se estamparam as armas reais. Os ourives levaram três dias para realizar a tarefa. Hoje, os 45 visitantes do Museu do Ouro de Santa Fé de Bogotá podem ler, gravados na pedra sobre a porta, os seguintes versos, dirigidos por um poeta asteca aos conquistadores espanhóis: "Maravilho-me de vossa cegueira e loucura, que desfazeis as joias bem 50 lavradas para fazer delas vigotes".
(Adaptado de Alberto Manguel, À mesa com o Chapeleiro Maluco: ensaios sobre corvos e escrivaninhas.
Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 21-22)
No texto, o autor:
a)
atribui à diferença de cultura a capitulação de Montezuma ao soberano espanhol, figura de contornos fantasmagóricos ao olhar do rei asteca. |
b)
evidencia que homens que se dedicam às armas, como o poderoso Cortés, por força do próprio ofício, não manifestam sensibilidade para as formas artísticas. |
c)
disserta sobre a apreciação da matéria-prima de tesouros em distintas sociedades, circunscrevendo seus comentários ao século XVI. |
d)
relata e comenta um episódio histórico que torna clara a ideia de que produções culturais e ações humanas não têm valor absoluto. |
e)
toma o caráter mercenário do colonizador como causa do seu olhar apurado, responsável, em última instância, pela sofisticação dos artífices em metais preciosos. |
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