1 "Faz escuro, mas eu canto", escreveu o grande poeta amazonense Thiago de
2 Mello. E faz escuro mesmo, caro leitor. Podridões político-ideológicas à parte, o escuro
3 se faz presente também (e não só) na leitura, na compreensão do mundo etc.
4 É triste constatar que mesmo entre os profissionais do texto é patente a
5 incapacidade de entender o que está escrito. A ironia, por exemplo, nem sempre é
6 captada por quem deveria ser mestre no assunto. Certa vez, uma douta professora
7 universitária se pôs a dizer o diabo de Caetano Veloso. O motivo da cólera? Estes
8 versos, de "Língua": "Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção / Está
9 provado que só é possível filosofar em alemão". Para a mestra, é possível filosofar em
10 português e em outras línguas. Ora pipocas! E quem foi que disse que Caetano disse o
11 contrário?
12 Relatei o fato a Caetano, que, rindo, disse: "Mas ela não entendeu nada! Não
13 entendeu a ironia?". Não entendeu mesmo. No mínimo por levar tudo ao pé da letra ou
14 por não saber que, na base da ironia de Caetano, está um velho conceito, que divide
15 tudo em diversos pares (natureza e cultura, letramento e analfabetismo, centro e
16 periferia, racionalidade e irracionalidade etc.). [...]
17 Quem leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem conhecimento dos
18 textos com os quais "dialoga" o texto lido no momento corre o sério risco de não
19 entender nada ou – o que é muito pior – entender exatamente o contrário do que quis
20 dizer quem escreveu. Não é por acaso que a intertextualidade é palavra-chave nas
21 provas de português dos mais importantes vestibulares e concursos públicos. O
22 entendimento de um texto vai muito, muito além do mero domínio das normas
23 gramaticais ou do significado das palavras.
24 José Saramago concedeu bela entrevista ao competente repórter Edney
25 Silvestre, da TV Globo. Disse o autor de "Ensaio Sobre a Cegueira": "Não se ganham
26 batalhas de hoje com as armas de ontem. Não se governa, não se atua na sociedade
27 com ideais. Tampouco se atua sem ideais, mas o ideal não é um instrumento de
28 trabalho. É preciso encontrá-lo. Precisamos de idéias. Esse é o grande problema".
29 Suponha descontextualizada a frase "Não se atua na sociedade, não se governa
30 com ideais". O mínimo que um apressadinho poderia fazer seria afirmar que Saramago
31 propõe o fim dos ideais, das ideologias. Talvez temeroso do que se pudesse (mal)
32 entender de suas palavras, o mestre português apressou-se em explicar o papel da
33 expressão "com ideais" ("mas o ideal não é um instrumento").
34 Isso dá valor ímpar ao par "com ideais/sem ideais": em "com ideais", a
35 preposição "com" introduz o instrumento; em "sem ideais", a preposição "sem" introduz
36 a condição ("Não se atua na sociedade sem ideais" = "Não se atua na sociedade se não
37 houver/ sem que haja ideais"). Como se vê, a relação que existe entre "com ideais" e
38 "sem ideais" vai muito além da mera antonímia.
39 Nos dias de hoje, em que as pessoas fecham o dicionário, mal o abrem, abrem
40 mil telas (e não vêem nenhuma), parece utópico exigir contextualização etc. Faz escuro,
41 mas eu canto. É isso.
Coluna publicada no dia 3 de novembro de 2005, no jornal Folha de S.Paulo
http://www2.uol.com.br/linguaportuguesa/artigos/ult1078u378.shl
Se desconsiderássemos as informações apresentadas no corpo do texto, o título "Não se governa com ideais" poderia levar à seguinte interpretação:
a)
o ideal é um instrumento de trabalho. |
b)
não se atua na sociedade sem ideais. |
c)
para governar não é preciso ter ideais. |
d)
não é preciso renunciar aos ideais para se atuar na sociedade. |
Copyright © Tecnolegis - 2010 - 2024 - Todos os direitos reservados.