1 (9/4/2009) Nestes últimos dois dias, participei da
2 gravação de um anúncio de televisão para uma loja de
3 informática. Foi um trabalho intenso: durante mais de vinte e
4 três horas, ensaiamos, gravamos, esperamos, maquiamos,
5 escutamos, esperamos, esperamos, gravamos, ensaiamos,
6 esperamos, comemos, esperamos e esperamos.
7 A equipe era composta por (pelo menos) setenta
8 pessoas. Isso mesmo, uma verdadeira superprodução. Com
9 uma estrutura hierárquica superdefinida, tudo funcionou na
10 mais milimétrica perfeição. Foi incrível. Éramos vinte atores,
11 quatro técnicos de luz, cinco de som, três maquiadores, três
12 figurinistas, doze cenógrafos, fotógrafos, umas dez pessoas
13 com as câmeras, diretor, assistente de direção, eletricistas,
14 produtores, assistentes de produção, estagiários, equipe
15 responsável pela comida, três bombeiros (?), pessoas da
16 limpeza, e outros, todos dando o seu melhor.
Tamanha quantidade de gente manuseando uma
17 tamanha quantidade de materiais técnicos. A tecnologia
utilizada ali era de ponta: câmeras super-ultra-high-tech,
18 gruas enormes, monitores, aparelhos de explosão, luzes,
19 computadores... Tecnologia desenvolvida através da história
20 da humanidade, desde a descoberta do fogo, passando pela
21 invenção da roda até chegar àquele estúdio ali. E ali
22 estávamos todos buscando dar o melhor, quem sabe até
atingir a perfeição. A máxima eficácia.
23 E tudo isso para quê? Para vender produtos de
informática. Tecnologia para desenvolver tecnologia para
24 desenvolver tecnologia, para quê? Para vender.
25 Nada contra o comércio, mas ali, metido naquele
26 circo, eu não conseguia evitar pensar, nem por um segundo,
27 que, se todo aquele enorme esforço, toda aquela incrível
28 concentração, toda aquela brilhante tecnologia, todo aquele
29 fascinante know-how, toda aquela imensa mão de obra, toda
30 aquela emocionante capacidade de mobilização fossem
31 utilizados para questões minimamente mais urgentes, não
32 sei, talvez questões tão simples quanto resolver a fome, ou
33 buscar a cura para doenças terríveis, ou até tentar solucionar
34 o problema da violência em países de terceiro mundo, quem
35 sabe se, por meio de um engajamento tão intenso e resoluto,
36 conseguíssemos algumas respostas práticas para problemas reais?
37 Digo "problemas reais" porque é bom saber discernir
38 as coisas. A publicidade, o motor que move este circo, é uma
39 verdadeira máquina de inventar problemas fictícios. Tal como
40 o destes dois dias. Toda essa parafernália que mencionei
41 estava unida para resolver um problema urgente, com um
42 claro objetivo a ser atingido no final. Esse problema era um
43 só: o de produzir uma imagem potente, capaz de seduzir o
44 consumidor e convencê-lo de que ele "necessita" daquilo
45 tudo. Convencê-lo de que ele é incapaz de viver sem aquele
46 produto. Convencê-lo de que sua alegria, sua sobrevivência,
47 sua participação no mundo depende daquilo. E não nos
48 enganemos, a publicidade não é o motor que move este
49 circo, a publicidade é uma ferramenta. Uma técnica,
50 tecnologia, portanto. O motor é o dinheiro, dinheiro querendo
51 mais dinheiro para ter mais dinheiro.
52 É fato que as grandes invenções humanas, o dito
53 progresso, passam pelo investimento e desenvolvimento de
54 práticas "inúteis". Caso acreditássemos que o que é inútil
55 fosse de fato desnecessário, nós, homens, nunca teríamos
56 chegado a desenvolver o telefone, ou o avião, o micro-ondas,
57 os computadores, não teríamos passeado na lua,
58 desenvolvido a culinária, e toda a história da arte não teria
59 existido. Seríamos primitivos. Pois é, se fôssemos incapazes
60 de investir no supérfluo, não passaríamos de meros
61 autômatos. Como já disse algum poeta ou filósofo (duas
62 brilhantes ocupações inúteis), "a melhor forma de transformar
63 o homem em objeto é dar-lhe apenas do que ele necessita".
64 Bom, pode ser que a citação não esteja exata, mas é o que o
65 filtro da memória me permite recordar. E, assim, lembro que,
66 neste mundo da eficácia em que vivemos, um grande poder
subversivo da arte (e talvez das ciências) é justamente o de
67 desenvolver tarefas inúteis. Criar pontes invisíveis,
suspender o tempo, lembrar ao homem que ele é capaz de
68 sentir dor e alegria. E, se tempo é dinheiro, por que não
69 ganhar tempo?
João Lima. Internet: <http://danceraudanger.blogspot.com>
(com adaptações)
O quinto parágrafo, que expõe ideias fundamentais para a compreensão da mensagem temática do texto II, é constituído por apenas um único período, com diversas vírgulas e um ponto de interrogação. Essa estrutura não muito usual foi montada com a finalidade de criar efeitos importantes dentro do texto. Assinale a alternativa que apresenta interpretação incorreta de fenômenos semântico-linguísticos do quinto parágrafo do texto II:
a)
A estrutura repetitiva busca criar suspense no leitor: enumeram-se reiteradamente sujeitos, com o fito de atiçar a curiosidade do leitor, deixando-o interessado no desfecho do pensamento em exposição. |
b)
Apesar de se dizer contra o comércio, o autor não poupa críticas e ironia ao trabalho que desenvolveu; isso pode ser comprovado em passagens, como “naquele circo”, (linhas 29 e 30), “questões minimamente mais urgentes” (linha 35), “questões tão simples” (linha 36). |
c)
O autor apresenta uma proposta para determinados problemas, mas não é categórico, não se acha o dono da verdade, pois demonstra incertezas; isso se comprova em expressões utilizadas por ele, como “não sei” (linhas 35 e 36), “talvez” (linha 36), “até tentar” (linha 37), “quem sabe” (linhas 38 e 39). |
d)
O emprego das construções iniciadas por “todo aquele” ou “toda aquela” demonstra o distanciamento do olhar crítico do autor: ele não quis participar, não quis estar no meio do processo; ele assistiu — de longe — a tudo que se passou. |
e)
A construção sintática de determinadas passagens revela dúvida, e a correlação modo-temporal criada está correta: a dúvida gerada por “quem sabe se” (linhas 38 e 39) combina-se sintaticamente com o pretérito imperfeito do modo subjuntivo — “conseguíssemos” (linha 40). |
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