Carlos Drummond de Andrade - Fala, Amendoeira (1957)
1 Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma
2 atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a
3 janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável
4 se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão -
5 névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que
6 algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar,
7 talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos
8 uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais
9 chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu
10 destino.
11 Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios
12 elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem,
13 e a luz crua do projetor, a
14 dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela
15 manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao
16 entardecer, cada dia, garotos
17 procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de
18 árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos
19 enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de
20 rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
21 Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e
22 outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o
23 marrom - cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas
24 amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se
25 preparavam para ganhar
26 coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se
27 não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe
28 perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando
29 vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
30 - Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas
31 assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas
32 irmãs não respeitem as estações.
33 - E vais outoneando sozinha?
34 - Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves
35 notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se
36 reparares bem neste ventinho que me fustiga pela
37 madrugada, uma suspeita de inverno.
38 - Somos todos assim.
39 - Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo.
40 Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores
41 chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da
42 vida que já não é clara,
43 mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que
44 da natureza.
45 - Não me entristeças.
46 - Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal.
47 Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos,
48 a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos
49 também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso:
50 parábolas, ritmos, tons
51 suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.
No texto, o autor personifica a árvore, espiritualiza-a. Assinale a alternativa em que isso NÃO ocorre:
a)
"Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho [...]." (linhas 19-20) |
b)
"[...] lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem [...]." (linhas 8-9) |
c)
"Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, [...]." (linhas 15-16) |
d)
"Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, [...]." (linhas 22-23) |
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