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Comentários / Tribunal de Justiça - Minas Gerais - Técnico Judiciário - Fundep - 2010 - Conhecimentos Básicos 1a (Genérica)


Fala, Amendoeira

Carlos Drummond de Andrade - Fala, Amendoeira (1957)

1        Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma
2        atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a
3        janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável
4        se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão -
5        névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que
6        algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar,
7        talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos
8        uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais
9        chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu
10      destino.
11      Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios
12      elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem,
13    e a luz crua do projetor, a
14      dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela
15      manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao
16      entardecer, cada dia, garotos
17      procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de
18      árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos
19      enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de
20      rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
21      Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e
22      outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o
23      marrom - cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas
24      amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se
25      preparavam para ganhar
26      coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se
27      não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe
28      perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando
29      vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
30      - Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas
31      assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas
32      irmãs não respeitem as estações.
33      - E vais outoneando sozinha?
34      - Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves
35      notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se
36      reparares bem neste ventinho que me fustiga pela
37      madrugada, uma suspeita de inverno.
38      - Somos todos assim.
39      - Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo.
40      Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores
41      chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da
42      vida que já não é clara,
43      mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que
44      da natureza.
45      - Não me entristeças.
46      - Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal.
47      Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos,
48      a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos
49      também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso:
50      parábolas, ritmos, tons
51      suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.

Questão:

Assinale a alternativa que apresenta a frase que identifica com mais eficiência a intimidade da Árvore com o Homem:

Resposta errada
a)

"Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, [...]." (linha 11)

Resposta errada
b)

"- Somos todos assim." (linha 35)

Resposta correta
c)

"[...], sou tua árvore-da-guarda [...]." (linha 42)

Resposta errada
d)

"E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs [...]." (linhas 24-25)

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