01 A tradição teológica e filosófica nunca conseguiu explicar o “mistério da iniquidade”, a existência do mal como potência do desejo e da ação humanas. Ora, a corrupção é o mal do nosso tempo. 05 Curiosamente, ela aparece como uma nova regra de conduta, uma contraditória “moral imoral”. Da governalidade aos atos cotidianos, o mundo da vida no qual ética e moral se cindiram há muito tempo transformou-se na sempre saqueável terra de ninguém. 10 Como toda moral, a corrupção é rígida. Daí a impossibilidade do seu combate por meios comuns, seja o direito, seja a polícia. Do contrário, meio mundo estaria na prisão. A mesma polícia que combate o narcotráfico nas favelas das grandes cidades poderia 15 ocupar o Congresso e outros espaços do governo onde a corrupção é a regra. Mas o problema é que a força da corrupção é a do costume, é a da “moral”, aquela mesma do malandro que age “na moral”, que é “cheio de moral”. Ela é muito 20 mais forte do que a delicada reflexão ética que envolveria a autonomia de cada sujeito agente. E que só surgiria pela educação política que buscasse um pensamento reflexivo. O sistema da corrupção é composto de um jogo de 25 forças do qual uma das mais importantes é a “força do sentido”. É ela que faz perguntar, por exemplo, “como é possível que um policial pobre se negue a aceitar dinheiro para agir ilegalmente?” O simples fato de que essa pergunta seja colocada 30 implica o pressuposto de que uma verdade ética tal como a honestidade foi transvalorada. Isso significa que foi também desvalorizada. Se a conduta de praxe seria não apenas aceitar, mas exigir dinheiro em troca de uma ação qualquer na 35 contramão do dever, é porque no sistema da corrupção o valor da honestidade, que garantiria ao sujeito a sua autonomia, foi substituído pela vantagem do dinheiro. Mas não somente. Aquele que age na direção da lei como que age contra a moral caracterizada pelo “fazer 40 como a grande maioria”, levando em conta que no âmbito da corrupção se entende que o que a maioria quer é “dinheiro”. Verdade é que a ação em nome de um universal por si só caracteriza qualquer moral. É por meio dela 45 que se faz o cálculo do “sentido” no qual, fora da vantagem que define a regra, o sujeito honesto se transfigura imediatamente em otário. Se a moral é medida em dinheiro, não entregar-se a ele poderá parecer um luxo. Mas um contraditório luxo 50 de pobre, já que a questão da honestidade não se coloca para os ricos, para quem tal valor parece de antemão assegurado. Daí que jamais se louve nos noticiários a honestidade de alguém que não se enquadra no 55 estereótipo do “pobre”. Honesto é sempre o pobre elevado a cidadão exótico. Na verdade, por meio desse gesto o pobre é colocado à prova pelo sistema. Afinal ele teria tudo para ser corrupto, ou seja, teria todo o motivo para sê-lo. Mas teria também todo o perdão? 60 O cidadão exótico – pobre e honesto – que deixa de agir na direção de uma vantagem pessoal como que estaria perdoado por antecipação ao agir imoralmente sendo pobre, mas não está. A frase de Brecht seria sua jurisprudência mais básica: “O que é roubar um banco 65 comparado a fundar um?” Ora, sabemos que essa “moral imoral” tem sempre dois pesos e duas medidas, diferentes para ricos e pobres. No vão que as separa vem à tona a incompreensibilidade diante do mistério da 70 honestidade. De categoria ética, ela desce ao posto de irrespondível problema metafísico. Pois quem terá hoje a coragem de perguntar como alguém se torna o que é quando a subjetividade, a individualidade e a biografia já não valem nada e 75 sentimos apenas o miasma que exala da vala comum das celebridades da qual o cidadão pode se salvar apenas alcançando o posto de um herói exótico, máscara do otário da vez?
(Marcia Tiburi. Cult, dezembro de 2011)
Assinale a alternativa em que a alteração estrutural de um trecho do texto NÃO tenha provocado inadequação de ordem gramatical ou discursiva nem alteração semântica.
a)
Se a moral é medida em dinheiro, não entregar-se a ele poderá parecer um luxo. (L. 48-49) / Se a moral em dinheiro é medida, poderá parecer um luxo não se entregar a ele. |
O sujeito de “é medida em dinheiro” é “a moral” nas duas versões do trecho em destaque. O que ocorre é que em “Se a moral em dinheiro é medida”, os elementos não estão na ordem direta, a expressão “em dinheiro” foi apenas deslocada. Esta, portanto, é a alternativa correta.
b)
Mas teria também todo o perdão? (l. 59) / Mas teria também todo perdão? |
O artigo tem a função de determinar o substantivo, a sua omissão resulta em mudança semântica generalizando-o.
c)
O simples fato de que essa pergunta seja colocada implica o pressuposto de que uma verdade ética tal como a honestidade foi transvalorada. (l. 29-31) / O simples fato que essa pergunta seja colocada implica no pressuposto que uma verdade ética tal como a honestidade foi transvalorada. |
A omissão da preposição “de” é feita indevidamente. Fato: ação ou coisa feita, ocorrida ou em processo de realização, ex.: fato de conversar.
d)
É por meio dela que se faz o cálculo do sentido no qual, fora da vantagem que define a regra, o sujeito honesto se transfigura imediatamente em otário. (l. 44-47) / É através dela que faz-se o cálculo do sentido onde, fora da vantagem que define a regra, o sujeito honesto se transfigura imediatamente em otário. |
O “que” é um fator de próclise (pronome substantivo).
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