Com alguém ao lado falando num celular, lendo os
e-mails, não se pode nem ao menos pensar.
É a solidão total
1 Há muitos, muitos anos, havia uma música de Zé
2 Rodrix que nos emocionava. Os primeiros versos diziam
3 "eu quero uma casa no campo, onde eu possa compor muitos rocks rurais"; e continuava
4 dizendo coisas
5 lindas, como "eu quero a esperança de óculos e um
6 filho de cuca legal, eu quero plantar e colher com as
7 mãos a pimenta e o sal". Era com isso que sonhávamos,
8 mesmo sem saber, ou era o que gostaríamos de
9 querer; belos tempos.
10 Os anos passaram, e os sonhos, no lugar de se
11 ampliarem, encolheram.
12 O que é que se quer hoje em dia? Menos, acredite, pois
13 querer um celular novo que faz coisas que até
14 Deus duvida é querer pouco da vida. Meu maior sonho é 15 bem modesto.
16 Nada me daria mais felicidade do que um celular
17 que não fizesse nada, além de receber e fazer ligações.
18 Os gênios dessa indústria ainda não perceberam que
19 existe um imenso nicho a ser explorado: o
20 das pessoas que, apesar de conseguirem sobreviver
21 no mundo da tecnologia, têm uma alma simples.
22 As duas mais dramáticas novidades trazidas pelo
23 celular foram as odiosas maquininhas fotográficas e a
24 impossibilidade de uma conversa a dois. Quando duas
25 pessoas saem para jantar, é inevitável: um deles põe
26 o celular - às vezes dois - em cima da mesa. O outro
27 só tem uma solução: engolir, mesmo sem água, um
28 tranquilizante tarja preta.
29 No meio de uma conversa palpitante, o telefone
30 toca, e a pessoa faz um gesto de "é só um minuto".
31 Não é, claro. Vira um grande bate-papo, e não existe
32 solidão maior do que estar ao lado de alguém que te
33 larga - abandona, a bem dizer - para conversar com
34 outra pessoa. No meio de um deserto, inteiramente
35 sós, estamos acompanhados por nossos pensamentos. Com
36 alguém ao lado falando num celular, lendo
37 os e-mails ou checando as mensagens, não se pode
38 nem ao menos pensar. É a solidão total, pois nem se
39 está só nem se está acompanhado. Tão trágico quanto, é
40 estar falando com alguém que tem um telefone
41 com duas linhas; no meio do maior papo, ele diz
42 "aguenta aí que vou atender a outra linha" e
43 frequentemente volta e diz "te ligo já" - e aí você não
44 pode
45 usar seu próprio telefone, já que ele vai ligar já (e 46 às
47 vezes não liga). Não dá.
48 Raros são os que atendem e dizem "estou com
49 uma amiga, depois te ligo" - nem precisavam atender,
50 já que o número de quem chama aparece no visor, e
51 as pessoas têm todos eles de cor na cabeça, como eu
52 não sei.
53 Eu juro que tentei, já troquei de celular três vezes,
54 mas desisti. Recebia contas que não entendia, entrei,
55 de idiota, num "plano", e quase enlouqueci quando quis
56 sair. Hoje tenho um que praticamente não uso, mas é
57 pré-pago, e só umas quatro pessoas conhecem; ponho 20
58 reais de crédito, se não usar não vou à falência, mas 59 pelo menos não recebo aquelas contas falando de
60 torpedos e SMS, coisas que prefiro nem saber que
61 existem. Ah, e meus telefones fixos são com
62 fio.
63 Do carro já me livrei: há cinco anos não procuro
64 vaga, não faço vistoria, não pago IPVA, nem seguro, e
65 sou louca por um táxi. Até ontem me considerava uma
66 mulher feliz, mas sempre soube que a felicidade dura
67 pouco: hoje ganhei um iPod. Uma quase tragédia, eu
68 diria.
LEÃO, Danuza in Folha de São Paulo. 7. mar. 2010.
Segundo o texto, a felicidade dura pouco porque:
a)
no meio de uma conversa animada, o interlocutor começa a falar ao celular. |
b)
a autora acaba sempre proprietária de algo moderno e que lhe traz complicações. |
c)
fica difícil pensar perto de alguém que fale num celular e leia e-mails ao mesmo tempo. |
d)
os gênios da indústria sempre inventam celulares cada vez mais modernos. |
e)
as coisas simples da vida só existiam há muitos e muitos anos |
Dos vários objetos de desejo apresentados no início do texto, dentre os pares abaixo, aquele que evidencia uma oposição é:
a)
“...uma casa no campo,” – “...compor muitos rocks rurais” (L. 3-4) |
b)
“...a esperança de óculos...” – “...um filho de cuca legal,” (L. 5-6) |
c)
“...plantar e colher com as mãos...” (L. 6-7) – “belos tempos” (L. 9) |
d)
“...com isso que sonhávamos,” – “...o que gostaríamos de querer;” (L. 7-9) |
e)
“...celular novo que faz coisas que até Deus duvida...” – “...pouco da vida.” (L. 13-14) |
O trecho “engolir, mesmo sem água, um tranquilizante tarja preta.” (L. 27-28) significa que o outro:
a)
deve tomar um medicamento controlado. |
b)
engole em seco, por não ter um líquido disponível. |
c)
cala-se no momento para só reclamar posteriormente. |
d)
tem motivos para se sentir estressado com a situação. |
e)
prepara-se para eventuais danos causados pelo jantar. |
Segundo a autora, a resposta “...estou com uma amiga, depois te ligo” (L. 46-47) é um ato:
a)
precipitado. |
b)
inútil. |
c)
grosseiro. |
d)
irônico. |
e)
necessário. |
A respeito do argumento da autora ao dizer “mas é pré-pago,” (L. 54-55), pode-se afirmar que
I - apesar de iniciar com a palavra “mas”, é positivo, pois ela não terá mais problemas com contas;
II - pode ser reescrito como “embora seja pré-pago”;
III - opõe-se ao declarado em “Eu juro que tentei..., mas desisti” (L. 51-52).
Está correto APENAS o que se afirma em:
a)
I. |
b)
II. |
c)
III. |
d)
I e II |
e)
II e III. |
A palavra destacada na frase “No meio de um deserto, inteiramente sós, estamos acompanhados por nossos pensamentos,” (L. 34-36) encontra-se usada com o mesmo sentido e no singular em:
a)
Só você mesmo para adorar celular! |
b)
Vamos só na esquina e já voltamos. |
c)
Penso só em comprar novas tecnologias. |
d)
Fala só o necessário para que não seja mal entendido. |
e)
Só, ela tenta argumentar contra os avanços modernos. |
Observe os trechos.
I - “é inevitável: um deles põe o celular (...) em cima da mesa”. (L. 25-26)
II - “...só tem uma solução: engolir (...) um tranquilizante tarja preta.” (L. 27-28)
III - “Do carro já me livrei: há cinco anos não procuro vaga.” (L. 61-62)
O sinal de dois pontos pode ter vários empregos na língua e um deles é mostrar que o que vem após os dois pontos expande a palavra que vem imediatamente antes.Isso acontece APENAS em:
a)
I. |
b)
II. |
c)
III. |
d)
I e III. |
e)
II e III. |
O trecho destacado na oração “apesar de conseguirem sobreviver no mundo da tecnologia” (L. 20-21), mantendo- se o sentido e a correção gramatical, é corretamente substituído por:
a)
embora conseguirem. |
b)
caso consigam. |
c)
se conseguirem. |
d)
ainda que consigam. |
e)
se bem que conseguissem. |
A autora utiliza estruturas negativas como recurso expressivo. Observe. “Nada me daria mais felicidade do que um celular que não fizesse nada,” (L. 16-17) “...não existe solidão maior do que estar ao lado de alguém...” (L. 31-32)
Que trecho, dentre os apresentados, poderia ser expresso também pela forma negativa apresentada à sua direita, mantendo o mesmo sentido?
a)
“é só um minuto.” (L. 30) – não é mais do que um minuto |
b)
“Com alguém ao lado falando no celular,” (L. 36) – Com ninguém ao lado falando no celular |
c)
“Raros são os que atendem...” (L. 46) – Não são poucos os que atendem |
d)
“como eu não sei.” (L. 49-50) – nada que eu não saiba |
e)
“Uma quase tragédia, eu diria.” (L. 65-66) – nada mais que uma tragédia, eu diria |
Em qual das sentenças, o pronome lhe(s) substitui adequadamente a expressão entre parênteses?
a)
Ela lhe jurou que não compraria mais celular. (ao filho) |
b)
Troquei-lhes várias vezes e não dei sorte. (os celulares) |
c)
Os celulares lhe enlouquecem diariamente. (a autora) |
d)
Recebia-lhes e não sabia o que queriam dizer. (as contas telefônicas). |
e)
Ligo-lhe somente quando tenho uma emergência. (o celular). |
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